EURATÓRIA

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O ACORDO DA VÉSPERA DE NATAL

Acordo comercial Reino Unido-União Europeia em traços gerais (publicado em cruzvilaca.eu)

UM COMPROMISSO COMPLEXO E CONTINGENTE

“Consummatum est”: o Reino Unido (RU) já não faz parte da União Europeia (UE), nem do seu mercado interno e união aduaneira. Todo ele? Não, a Irlanda do Norte, uma das nações que integram o RU, continua a fazer parte, na prática, do mercado interno europeu.

Parece confuso, é confuso, e ilustra de forma lapidar a complexidade do “acordo de véspera de Natal”, como tem vindo a ser referido o acordo comercial que, obtido no dia 24 de dezembro de 2020, a uma semana do final do prazo, permitiu evitar o caos que resultaria de uma saída definitiva sem acordo.

Foi evitado o pior de todos os cenários, o que não significa que o resultado seja perfeito, muito pelo contrário. Este é um acordo complexo, é verdade, mas também ainda muito lacunar, contingente e subjetivo, com inúmeras incertezas e incógnitas, muitas matérias por decidir, objeto inevitável de negociações futuras.

E enquanto se continua a esmiuçar o texto do acordo, longo de milhares de páginas, e as partes procuram apresentá-lo à luz mais favorável possível, analistas tentam antecipar as suas consequências, deparando com a dificuldade que resulta da referida natureza, lacunar, contingente e subjetiva.

Certo é que, a partir de agora, o RU passa a ter, em relação à UE, o estatuto de Estado terceiro. O acordo celebrado é um instrumento de direito internacional, que vincula as partes, e prevê os mecanismos para a implementação e a resolução dos conflitos que dele possam emergir. Esse será sem dúvida um dos pontos-chave da relação futura entre o RU e a UE.

O TRATADO E O MERCADO

Começando pelos números: em 2019, 43% do total das exportações do Reino Unido (RU) foram para a União Europeia (UE), sendo 58% em produtos e 42% em serviços. E o RU importou da UE-27 52% do que necessita[i]. Mais importante ainda, o défice britânico no comércio dos produtos é cerca de € 108 mil milhões; como tem um superavit de € 20 mil milhões nos serviços, o défice comercial final, em 2019, foi de € 87 mil milhões. O total do comércio bilateral é de € 740 mil milhões.

Para Portugal, o RU é um mercado fundamental. Trata-se do nosso 4º cliente em termos de comércio de bens e serviços, 9,6% das exportações portuguesas (em 2017).

Ora, o Conselho da União Europeia aprovou no dia 29 de dezembro, por acordo unânime dos 27 Estados-membros (EM), a aplicação do Tratado Comercial e de Cooperação (TCC) com o RU a partir de 1 de janeiro de 2021. A aprovação é provisória até ao final de fevereiro e permite a entrada em vigor do acordo na pendência das decisões parlamentares necessárias, quer do Parlamento britânico (que o aprovou a 30 de dezembro), quer do Parlamento Europeu (PE), que só votará o acordo no ano que agora começa.

Haverá risco de rejeição pelos parlamentares europeus? É improvável, e só não é de considerar impossível pela margem de cautela exigível nestas questões (e por um prurido de consciência democrática). Qual então a necessidade de aguardar o parecer do PE para transformar o Tratado de provisório em definitivo? Por duas razões, uma jurídica (é obrigatório), outra da ordem dos valores democráticos. Não sabemos se chega para evitar algum fumo de hipocrisia, mas salva-se a Europa do caos de um não-acordo.

No dia 1 de janeiro de 2021, o RU abandonou em definitivo (será?) o mercado interno, a união aduaneira, as políticas europeias e os acordos internacionais da UE. Acaba-se a liberdade de circulação entre as duas margens do Canal da Mancha. Em contrapartida, foi celebrado um acordo de comércio livre sem precedentes, base para a cooperação futura. A própria UE, numa brochura sobre o TCC, o diz: “vai muito para além de um acordo de comércio livre tradicional e constitui uma base sólida para a preservação da nossa antiga amizade e para a cooperação futura”. Será assim?

O acordo é substancial e elaborado. Prevê liberdade de comércio dos produtos em geral, incluindo os produtos agrícolas, e facilita os procedimentos alfandegários pelo reconhecimento mútuo dos chamados “Operadores Económicos Autorizados”. Obriga ao cumprimento das regras de origem (de onde são verdadeiramente originários os produtos?), mas os exportadores podem auto-certificar a origem. E passa a haver controlos e declarações obrigatórias, para avaliar da conformidade dos produtos importados do RU com as especificações técnicas e regulatórias em matérias de saúde, segurança, direitos laborais e outros padrões europeus. Alguns produtos terão vida facilitada nessa comprovação, caso dos de baixo risco ou “de interesse mútuo”, como os automóveis, vinho, produtos orgânicos, farmacêuticas e químicos. 

A UE quis vincular para o futuro o RU aos seus padrões e regras em matéria regulatória, no respeito do chamado “level playing field” (que podemos designar “plataforma de igualdade” no comércio e na concorrência) relativo aos direitos sociais, exigências sanitárias e ambientais, ajudas de Estado e regras da concorrência em geral, um dos pontos-chave do acordo. Sem sucesso: ficou consagrado o reconhecimento da situação atual e a aceitação mútua dos padrões de cada uma das partes, uma cláusula referida como de paragem ou “standstill”. Contudo, alterações substanciais às regras aplicáveis e em vigor aquando da aplicação do TCC serão abordadas no âmbito da parceria e podem levar a respostas da parte que se considere lesada, como a imposição de taxas ou quotas ou até a suspensão de pontos específicos do acordo, desde que justificadas e proporcionais (ver mais abaixo).

Referidos no acordo e objeto de declarações políticas apensas ao TCC estão aspetos muito sensíveis, como o controlo dos subsídios (em que circunstâncias são as ajudas de Estado aceitáveis?) e os regimes fiscais. Neste caso, há uma espécie de acordo (quase tácito, dada a natureza vaga das disposições e declarações) no sentido de que as taxas não serão usadas como forma de discriminação; porém, os mecanismos de resolução de conflitos são pouco claros, sem prejuízo do que mais abaixo se refere. No fundo, as partes mantêm alguma margem (discricionária) em matéria de fiscalidade. E, quer no que respeita aos impostos, quer às ajudas de Estado e outras matérias, ainda há trabalho a fazer para tornar o acordo operacional e credível.

Um exemplo: em matéria sanitária e fitossanitária, sobre proteção da saúde humana, animais e plantas, os exportadores britânicos da agroindústria deverão respeitar as regras europeias e serão sujeitos a controlos nas fronteiras dos EM. O contrário também é verdadeiro. Não haverá, contudo, um princípio de reconhecimento mútuo das regras aplicáveis por cada Parte, pelo que a exportação terá sempre de ser baseada em documentos que comprovem o respeito das aplicadas no mercado de destino.

E há um acordo sobre o IVA, a recuperação de verbas relacionadas com taxas aduaneiras, cláusulas contra fraudes alfandegárias, erros administrativos, etc, num esforço notável de cooperação.

O TRATADO, OS SERVIÇOS E OS PROGRAMAS EUROPEUS

Se nos produtos haverá mercado livre, ainda que regulado, nos serviços a situação é outra. Os prestadores de serviços só beneficiarão de um tratamento não discriminatório se cumprirem as regras do país em que os oferecem, acabando o princípio do país de origem, ou cláusula do mercado interno, segundo a qual estão, em princípio, sujeitos à legislação do EM no qual se encontram estabelecidos e não às diferentes legislações dos países onde os seus serviços são prestados. Também cessa o reconhecimento mútuo de qualificações, ainda que possam no futuro ser estabelecidos regimes de Reconhecimento Mútuo de Qualificações Profissionais (através de acordos entre reguladores e representantes dos diferentes setores profissionais), e o chamado “passporting” (ver mais abaixo).

Numa nota mais positiva, mantém-se a liberdade das viagens de negócios de curta duração e as transferências temporárias de trabalhadores do mesmo grupo empresarial. Alguns setores ficam excluídos dos novos direitos: audiovisuais, serviços públicos, serviços de interesse geral e alguns casos relacionados com transportes.

Foi um desfecho surpreendente aquele que resultou num acordo limitado em matéria de serviços, particularmente os financeiros. A perda do “passporting” – o direito de uma empresa registada num EM de operar em qualquer país da União, aí se instalar ou oferecer serviços transfronteiriços sem precisar de outras autorizações – representa um enorme prejuízo para a indústria financeira britânica, e logo num setor económico em que o RU tem superavit na relação com a União. Mas atenção: uma declaração política anexa ao TCC reconhece a necessidade de prosseguir o diálogo nesta matéria, incluindo a possibilidade de celebrar um acordo de entendimento até março de 2021, que inclua cláusulas de “equivalência”, isto é, o reconhecimento dos critérios e regras mútuos. Que grau de precariedade ou de certeza poderá ter esse processo é o que falta ainda conhecer.

O acordo assegura as ligações por ar, terra e mar. No caso da aviação, o RU perde os direitos de tráfego que tinha no espaço aéreo europeu. No transporte terrestre, o trânsito é permitido desde que cumpridos padrões elevados de segurança e condições de trabalho. A concorrência entre operadores europeus e britânicos far-se-á numa “plataforma de igualdade” em matéria de direitos dos passageiros, segurança do transporte, proteção ambiental e outras. A gestão do espaço aéreo comum e a segurança do transporte aéreo serão objeto de cooperação.

O paradigma supremo do que seria uma separação sem acordo foi, sem dúvida, o bloqueio de centenas de camiões nos acessos ao porto de Dover, provocado pela nova estirpe da pandemia, um vislumbre daquilo que poderia ter sido: caos, quebra nos abastecimentos, dramas humanos, prejuízos económicos de monta.

O abastecimento energético é assegurado e os fluxos (através das interconectividades instaladas, de cabos elétricos e condutas de gás) continuarão a fluir. No plano das alterações climáticas, a cooperação também se mantém, com uma cláusula que permite suspender o acordo se alguma das partes incumprir os compromissos do Acordo de Paris.

E depois há o “pequeno pormenor” das pescas, que atirou a conclusão do acordo para a 23ª hora. O acesso às águas do RU por parte das frotas europeias será mantido por 5 anos e meio, com uma redução gradual e equilibrada das quotas (em quantidades já determinadas para os mais de 100 stocks distintos partilhados), fixando-se em 2026 a base para a determinação anual dos totais de captura e sua distribuição, que terá lugar a partir daí. De referir que o mesmo se aplica ao acesso de embarcações britânicas a águas europeias.

Um artigo do acordo prevê “Medidas compensatórias em caso de supressão ou redução do acesso” e está a merecer a atenção dos especialistas. Assim, se uma das partes notifica a outra da supressão ou redução do acesso entretanto determinado, esta pode “adotar medidas compensatórias compatíveis com o impacto económico e societal da alteração do nível e das condições de acesso às águas” (artigo FISH.9). É caso para dizer “muita faneca para pouco bacalhau” (sendo que nem um nem o outro são dominantes nas águas em disputa – a supor que os haja).

Finalmente, a UE aceitou a participação do RU nos programas europeus de inovação, investigação e espaço. Inclui o Horizonte Europa (sucessor do Horizonte 2020), o programa de investigação do Euratom, o ITER (instalação de testes de fusão), o Copernicus e os serviços de Vigilância de Satélites. Os britânicos pagarão uma contribuição, a determinar (não há almoços nem investigação grátis, pelos vistos). Por outro lado, continuam a participar na Agência Espacial Europeia, que não é uma organização da UE.

 O TRATADO E AS PESSOAS

No que respeita às pessoas, o acordo é interessante. Os europeus podem entrar no RU e os britânicos na UE, dispensando vistos, por períodos curtos de 90 dias (no espaço de 180). Existem medidas de salvaguarda da segurança social, relativas aos direitos dos cidadãos de um e outro lado que vivam ou trabalhem na UE ou no RU, e respeitando a acesso a pensões, cuidados de saúde, acidentes de trabalho ou benefícios de maternidade.

O Cartão Europeu de Seguro de Saúde continua válido e os britânicos passarão a dispor de um “UK Global Health Insurance Card” que lhes permite acesso a tratamento médico em países europeus aquando de uma estadia, nas mesmas condições dos nacionais respetivos (mas perdem esse direito noutros países europeus, como a Noruega, Islândia, Liechtenstein e Suíça).

Entretanto, o RU abandona o chamado Espaço Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça e será um país terceiro em relação aos acordos de Schengen. Mas está prevista uma estrutura para cooperação judicial em matéria criminal, incluindo o compromisso de proteger e aplicar os direitos fundamentais determinados pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada no âmbito do Conselho da Europa (não confundir com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

O RU deixa de ter acesso direto e em tempo real às bases de dados europeias, como a importante base de dados de informações sobre segurança e gestão de fronteiras do Sistema de Informação de Schengen II. Está, contudo, prevista a troca de informação em matéria de dados de passageiros aéreos, registos criminais, DNA, impressões digitais e registo de veículos. O RU continuará a cooperar com a Europol e o Eurojust na luta contra o crime transfronteiriço, lavagem de dinheiro e terrorismo. Por outro lado, abandona o mecanismo do mandado europeu de detenção e entrega e, embora estejam previstos procedimentos para entrega de criminosos, não são idênticos, já que os países europeus e o RU podem recusar-se a cumpri-lo. Além disso, as partes comprometem-se a respeitar altos níveis de proteção de dados.

 O TRATADO, A GOVERNANÇA E A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Um dos pontos fulcrais nas negociações foi o da governança do próprio TCC. Como operar, como resolver disputas, como garantir a aplicação das regras. É neste ponto que reside, na nossa opinião, uma das fraquezas do acordo, excessivamente contingente. Há um único instrumento de governança, o Conselho da Parceria (“Partnership Council”), composto por representantes das duas partes, em paridade, assistidos por comités especializados e grupos de trabalho. Encarregue de assegurar a execução do acordo, toma decisões vinculativas por consentimento mútuo.

Um mecanismo horizontal de resolução de conflitos, baseado num tribunal arbitral independente, decidirá os casos de desacordo, também com força vinculativa. Tal como o RU pretendia, o Tribunal de Justiça da UE não será tido nem achado na matérias.

E, finalmente, mecanismos de salvaguarda e execução (ou coação – “enforcement”), entram em ação: as partes podem reintroduzir quotas ou tarifas no setor afetado ou mesmo retaliar noutras áreas, em caso de incumprimento de decisão de um tribunal arbitral. Há até a hipótese de suspender ou revogar o acordo, na totalidade ou em parte, em caso de quebra de elementos essenciais como o respeito pelos valores fundamentais, as obrigações em matéria de clima ou a não proliferação de armas nucleares.

Importa salientar que os mecanismos de resolução de conflitos não são uniformes, havendo variações consoante os setores, com exceções e cláusulas especiais que farão decerto as delícias de peritos e advogados.

Em suma, não são de excluir momentos de futura tensão, novos braços de ferro, retaliações e contra-retaliações. Há inúmeras zonas cinzentas e acordos por concluir, são frequentes as referências a “reservas” relacionadas com áreas de competência mista entre os Estados membros e a União, tornando a determinação do acesso ao mercado e a regulação dependentes de distintas regras e leis nacionais. Pode haver secções inteiras do TCC que venham a soçobrar, não se revelando eficazes ou sendo rejeitadas pelas partes, por impossibilidade de consolidar procedimentos.

Mas talvez convenha encarar o acordo na sua multiplicidade e complexidade, podendo acontecer exatamente o oposto, isto é, uma crescente integração, com um efetivo respeito pelas regras mútuas e um alinhamento em quase todas as dimensões relevantes. Isso ou o seu contrário faz aumentar, afinal, a subjetividade de muitas soluções e o grau de contingência do acordado.

Só o futuro dirá.

Entretanto, é bom não esquecer, está em vigor desde janeiro de 2020 o Acordo de Saída, que regula nomeadamente a relação entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, com um sistema específico para as trocas de e para esta região do RU. E um acordo de última hora (31 de dezembro) entre as autoridades espanholas e o governo britânico prevê que Gibraltar continue a fazer parte do espaço Schengen de livre circulação (a agência europeia Frontex patrulhará os pontos de acesso ao “Rochedo” durante 4 anos).

Ah, é verdade: o Reino Unido trocou o Erasmus pelo Turing, que deverá ver a luz do dia algures no próximo verão. Promessas quebradas, expetativas frustradas.


[i] Consultámos várias fontes para este efeito. Entre outros, vg. https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-7851/. Também https://www.gov.uk/government/organisations/department-for-international-tradehttps://www.gov.uk/government/statistics/uk-trade-in-numbershttp://www.portugalglobal.pt/PT/Internacionalizar/Paginas/MercadosExternos.aspx?marketId=18.


Versos da panfolia 89

A humanidade deslizou por uma encosta

Alçada ao último passo da falésia

A contemplar o abismo e a finitude.

E se não fosse o caso de ser rude

Eu diria nesta fase de tristeza

Informe ser o tempo da firmeza.

E nos mares os barcos não navegam

Encalhados em plástico e palhinhas,

E a maré galga diques sucessivos.

E se ainda por um fio nos vemos vivos

E os nossos filhos pedem por futuro

O fim dos tempos mostra-se maduro.

Uma gaja de fama duvidosa

Alcança um patamar sem paralelo

O rosto branco, fino, frágil, nu.

E se não fosse mestre de kung-fu

Adulada rainha, presidente

Acabaria mito, igual à gente.

Já não há volta a dar

Senão chorar. Já não nos resta nada

Senão medo. E um desistir mais cedo

(gentilmente cedido por A.)

Versos da panfolia 90

Perdi-me na metafísica

de um lugar onde não estive

a caminho de onde vim

sem poder voltar atrás.

Olhos sem íris na cara

mãos fechadas sobre o peito

Venho de onde nunca estive

chego onde nunca estarei.

(verso cedido por Sabre)

BREXIT

A 16 dias do final do prazo, impõe-se (ou pelo menos pode dar jeito) uma atualização

  1. Seja qual for o resultado das negociações, haja acordo – ou nenhum acordo -, o Reino Unido (RU) e a União Europeia (UE) não terão o mesmo nível de acesso ao mercado um do outro. Ora a UE, com os seus 448 milhões de cidadãos (maior mercado único livre do mundo), é de muito longe o maior parceiro comercial do RU (67 milhões de habitantes): em 2019 exportou para a União 43% do total das suas exportações (294 mil milhões libras), e importou 52% de todas as importações (374 mm de libras).
  2. O objetivo principal das negociações (ainda) em curso, é a supressão das barreiras tarifárias entre as duas partes, sejam elas taxas aduaneiras ou as chamadas medidas não tarifárias (quotas e proibições de importações ou exportações, barreiras sanitárias, fitossanitárias, ambientais, de segurança pública, entre outras).
  3. Sem acordo, os produtos dos dois lados passarão a pagar as tarifas aduaneiras determinadas pelo Organização Mundial do Comércio. Consequências? Produtos mais caros, diminuição das exportações, dificuldades nas fronteiras.
  4. As tarifas não são o único tema, longe disso. O que está em causa inclui uma lista tão longa que não cabe no espaço de um post: direito de circulação dos cidadãos britânicos e europeus, prestação de serviços financeiros britânicos na UE (sobretudo), pescas, aviação, projetos de investigação e tantos outros.
  5. A bloquear as negociações até há pouco tempo, mais do que um elefante na sala, um elefante à solta, foram afastadas as normas da lei britânica (do mercado interno britânico) que renegavam cláusulas do acordo de saída (“withdrawal agreement”) aprovado em janeiro de 2020 pelas partes (sobre os controlos no mar da Irlanda). Sobram três pontos, conhecidos à saciedade.
  6. Pescas. Os pescadores do norte do continente, em particular franceses, mas também holandeses e dinamarqueses, capturam 35% do pescado (arenque, cavala e linguado, para além do lagostim), em águas da zona económica exclusiva (ZEE) britânica. A frota britânica captura 80% do peixe nas suas águas, só 13% nas de outros países europeus (valores de 2017). Percebe-se a importância para os pescadores do continente de continuar a pescar em águas britânicas, como se percebe a vontade dos britânicos de preservar e valorizar a sua ZEE. Mas há um dado adicional: o RU exporta mais de 70% do pescado e produtos do mar para a UE (1,34 mil milhões em 2018); conjugando com o ponto 3, é caso para perguntar quem ganha com o quê?
  7. Regulação (o famoso “level playing field”, ou patamar de igualdade). Os europeus exigem que o acesso ao mercado único respeite os padrões regulatórios aplicados na UE (o contrário também é verdadeiro) em matéria de concorrência, regras ambientais, sanitárias ou de direitos sociais. E exigiram uma cláusula dita “evolutiva”, que o RU parece (finalmente) aceitar: caso alguns dos padrões regulatórios em causa venham com o tempo a divergir substancialmente dos da outra parte, esta pode impor tarifas sobre as importações em causa, protegendo as suas empresas e refazendo o patamar de igualdade (“level playing field”). Falta estabelecer os critérios para determinar quando a regulação põe verdadeiramente em causa esse patamar; que procedimentos usar; e que medidas pode a parte prejudicada tomar. Tudo coisas fáceis (estou a brincar, claro). Mas talvez os pormenores possam ficar para mais tarde – desde que o patamar de igualdade fique desde já protegido de futuras mudanças.
  8. A governança do acordo futuro, ie, como serão resolvidos potenciais conflitos, parece o ponto menos controverso dos três.
  9. Meio mês para a saída do RU do mercado interno e da união aduaneira. A haver acordo, o Parlamento Europeu, terá de o ratificar ou rejeitar e só o poderá fazer depois de dispor do texto final, um documento que terá certamente centenas de páginas. Um processo cuja duração é normalmente de vários meses, terá de decorrer em poucos dias.
  10. Afinal, quais as probabilidades de um acordo? Na minha opinião, não há outra razão para ambas as partes terem ignorado sucessivos prazos estabelecidos por si próprias, salvo ambas precisarem desesperadamente de um acordo. Nenhuma quer ser responsável pelo caos que inevitavelmente ocorrerá a partir de 1 de janeiro de 2021, se entre o RU e o continente se reinstalar uma barreira alfandegária, regulatória, política e, sim, moral – afastando duas partes condenadas a viver juntas pela geografia e pela história.
  11. Ultrapassado o debate entre soberania britânica e integridade do mercado interno, como referia esta semana o FT, trata-se agora de chegar a fórmulas concretas sobre assuntos concretos. Mas, no final do dia, o importante é ambas as partes poderem “cantar vitória”.
  12. E não, os Impérios já não moram aqui.

Versos da panfolia 91

A BOLA WILSON

Passo a noite sozinho

Como se vivesse sem

E o Mundo, o Mundo todo, me tivesse dentro

E a mais ninguém.

Não é fácil, não é fácil:

Primeiro, fechar portas e janelas bem fechadas

Prako som fique lá fora

E não me cheguem ecos de paixões, amuos

Ou sequer de alguma demora.

Depois, desligar.

A televisão com as suas notícias de outras vidas

Os telemóveis e as chamadas indevidas

A campainha, não vá o homem da edp

Chegar-se ao pé e carregar e pedir para fazer a leitura

E depois logo se vê.

Mas eu não quero, sou sozinho

No Mundo.

Não contemplar o firmamento da janela do meu tormento

Pranão ver o rasto dos jactos modernos

Carregados de vidas humanas

Cheias de sentimento

(seja medo, vontade de chegar, comichão viageira).

Nada de rádio nem computador, pois claro,

Tinha-me esquecido do maior actor,

Artificial, digital,

Esqueço-me,

Quero ficar sozinho e invejo Tom Hanks,

Porra meu que sorte,

Também eu procuro a bola Wilson e não encontro,

Se a vir, sabes,

Hei-de desenhar um cometa

Que vai por aí sem companhia em busca do infinito.

É uma treta, sabes, não há infinito,

Só muita matéria negra

Solidão,

Como a invejo.

Corre a noite, estou sozinho e ponho a tocar na coluna

Um tipo morto,

Talvez Jackson, o pedófilo, ou o artista antes chamado Prince,

Todos solitários incapazes de se libertar da fama,

É tarde, quase manhã, é tarde

E agora escuto Leonard e é tarde,

De repente alguém desata aos murros à porta

Talvez seja o vento,

Talvez continue sozinho

Ou talvez não,

Cohen conhece uma mulher chamada Joana d’arc

Será assim que acaba, desligo a música,

Abro a porta e um ser humano,

Gordo, barbudo, papel na mão, Joana d’arc

não deixes, imploro Leonard,

Que isso me marque,

Mas é tarde.

Não estou sozinho.

Assino e vou dormir,

Disposto a tentar outra vez.

E juro que não estou louco.

(gentilmente cedido por PAS, um escrito de 2019, ainda ninguém usava máscaras na rua)

APÓS UM “ANNUS HORRIBILIS”, A EUROPA VOLTA AOS CARRIS

12 estações para um final feliz: Portugal no lugar do maquinista a 1 de janeiro 2021

2020 ficará na História como um dos anos mais difíceis e atípicos dos últimos cem anos. Mas há pelo menos 12 razões para acreditar que a Europa vencerá esta crise sem precedentes. Vamos ganhar o futuro!

1.      O mais importante sinal da solidariedade e coesão europeias é evidentemente a aprovação do “Próxima Geração Europa” (PRR): 750 mil milhões (MM) € para apoiar a curto prazo as economias afetadas pela pandemia. Desse valor, 390 MM serão subsídios, 360 MM empréstimos, a somar ao orçamento de 1,08 biliões € para os próximos 7 anos. Não faltarão recursos – e não, não são um presente envenenado, mas um sinal da união dos povos europeus, numa organização frágil por natureza, mas que resiste às intempéries populistas trazidas por um vento iliberal.

2.      O regulamento que prevê um regime de condicionalidade para proteger o orçamento da União foi preservado. O Conselho Europeu (CE) de dezembro, interpretando-o, determinou que a condicionalidade deve respeitar as identidades nacionais e a igualdade entre os Estados-membros (EM); ser subsidiária e proporcional; de causalidade clara entre as violações e o prejuízo para os interesses financeiros da UE; e entre outras considerações, o regulamento só se aplica às autorizações orçamentais do novo quadro financeiro, incluindo o PRR. Em suma: cautelas na condicionalidade, mas nem por isso deixa de se aplicar. Aposto – arrisco-me à derrota, bem sei – que não tarda voltaremos a ouvir falar dela.

3.      A coordenação europeia da luta contra a pandemia. Desde logo, a Europa assegurou a compra de vacinas em quantidades consideráveis, garantindo a sua disponibilidade para os EM e acesso equitativo a preços acessíveis: a vacinação é um bem público mundial. Do mal o bem que o resgata: está aberto o caminho para uma União (europeia) da Saúde, que responda depressa e melhor a futuras pandemias; para tal, a UE propôs um tratado internacional sobre pandemias, a estabelecer no quadro da OMS.

4.      No rápido Conselho Europeu, aprovada a redução interna líquida de pelo menos 55% das emissões de gases com efeito de estufa em 2030 (comparação com 1990). A meta final é o impacto neutro no clima em 2050, preservando, no passo, a competitividade europeia, as interligações, a segurança energética e o acesso acessível das pessoas à energia.

5.      A Europa contra o terrorismo. Contra a radicalização. Contra as ideologias que alimentam terror e extremismo violentos. Que apela à luta contra os conteúdos ilegais em linha; a iniciativas para compreender a disseminação de ideologias extremistas; ao intercâmbio europeu de conhecimentos, investigações e competências científicas; à conformação da educação e formação religiosas com os direitos e valores europeus (!); ao reforço da cooperação policial e judiciária em todos os seus aspetos – está a Europa inteira nos seus princípios fundamentais, na riqueza civilizacional que brilha como um farol (ainda brilha como um farol).   

6.      Também o Eurogrupo decidiu reformar o Mecanismo de Estabilidade, antecipando para 2022 a criação do apoio (backstop) ao Fundo Único de Resolução para resolver bancos falhados no contexto da União Bancária (lembram-se do BES?).  Estão criados 2 dos seus pilares –o mecanismo de supervisão e de resolução únicos -, falta o Esquema Europeu de Seguros de Depósito para consolidar o sistema financeiro e bancário europeus.

7.      Com a nova administração dos EUA, a parceria estratégica transatlântica volta a ser credível. O multilateralismo e a cooperação internacional regressam à ordem do dia.  Reformar a OMC. Repensar a NATO. Lutar juntos contra as alterações climáticas (voltamos a ter Paris…).

8.      A Europa convive há anos com uma vizinhança turbulenta e sofredora. A Turquia, por exemplo, é cada vez mais um problema. O Conselho Europeu condenou as ações unilaterais, provocações e retórica daquele país contra a União, EM e dirigentes europeus (máxime Macron), salientando embora a importância do diálogo. Foram reforçadas as medidas punitivas de 2019, num sinal cauteloso – acordo sobre migrantes oblige – mas firme da determinação e coesão europeias. Dikkatli ol başkan Erdoğan.

9.      Haverá nova agenda para o Mediterrâneo, com referência ao papel da sociedade civil e a importância de “respostas mediterrânicas específicas, numa estreita cooperação em domínios como o ambiente, conectividade, educação e cultura e os recursos naturais”. À volta deste Mar que tanto liga como separa, fonte de vida e causa de morte e sofrimentos mil, renova-se uma parceria com 25 anos, assente numa História milenar comum e numa geografia inelutável. Condenados que estamos ao entendimento.

10.  A UE adotou pela 1ª vez um regime global que visa pessoas, entidades e organismos (e Estados), que violem os direitos humanos, independentemente do local onde ocorram. Em causa genocídio, crimes contra a humanidade, tortura, escravatura, prisões arbitrárias, execuções extrajudiciais, violações ou atropelos sistemáticos. Aos visados será aplicada a proibição de viajar, o congelamento de fundos, a proibição de receber verbas de pessoas e entidades europeias. Direitos humanos cada vez mais centrais na ação da UE e da sua política externa.

11.  A Europa digital é um dos dois braços gémeos do plano europeu para a década (com o clima), elemento transversal do orçamento multianual da UE. Supercomputação, inteligência artificial, cibersegurança, competências digitais avançadas, hubs de inovação digital, contribuirão para a competitividade europeia na economia digital global, a soberania tecnológica, o bem-estar dos seus cidadãos. Para que o continente europeu não seja apenas o museu do Mundo, mas uma terra de progresso e paz.

12.  As migrações e os refugiados, desafio e necessidade, que requerem esforço, boa vontade, critérios e regras comuns para responder aos desafios gerados por um fenómeno a um tempo tão velho como o Mundo e tão recente e desafiador como as ondas de refugiados que num só ano (2015) trouxeram à Europa um milhão e 200 mil solicitadores de asilo.

Portugal assume em janeiro a presidência do Conselho da UE. Não é uma presidência de alto perfil como as duas anteriores, modificada a sua natureza pelas alterações do Tratado de Lisboa. Mas é ainda assim importante, desde logo para a própria União, que confia ao nosso país, a par de outros, as dificuldades, os progressos, os programas e os objetivos identificados neste dodecálogo. Não são os trabalhos de Hércules, são mais do que isso – e Portugal tem gente qualificada, uma diplomacia experiente, capacidade e conhecimento para levar a cabo a tarefa. Assim o espero.

Aos negacionistas, anti-globalistas, eurocépticos de todos os quadrantes: ninguém é uma ilha, no fundo somos todos fruto da mesma cepa.

(e o Brexit?… seria o 13º ponto. Aguardemos, com paciência inglesa)

Versos da panfolia 92

O RUMO, OU TALVEZ NADA

Omissos vagueiam

Pela indispensável consolação das almas

Quando dos corpos já não sobram senão

(Cruzamentos da vida)

sinais das horas que passam.

Orientem-se, diz a voz que nada nos diz,

sois vós que escolheis o rumo.

(Um resquício de tempos assim, esquecidos)

Polícias sinaleiros

a uma esquina abandonada

acenam determinados

a gente que não está lá

(e se calhar nunca esteve).

(gentilmente cedido por AAA)

O regime de condicionalidade e o impasse na aprovação do orçamento europeu (e não só)

(texto retirado, com a devida vénia, do site CVA – O que é o Regime de Condicionalidade para proteção do orçamento da União Europeia? (cruzvilaca.eu))

O impasse

A Polónia e a Hungria vetaram a aprovação do orçamento da União Europeia (UE) para os próximos 7 anos – o designado quadro financeiro plurianual (QFP). Ao mesmo tempo, também disseram não aprovar a decisão sobre o aumento dos recursos próprios, indispensável à obtenção, por parte da Comissão Europeia, dos € 750 mil milhões do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR – a “bazooka”) no mercado obrigacionista.

Recordamos os procedimentos necessários em cada caso:

O regulamento do QFP exige unanimidade no Conselho e aprovação pelo Parlamento Europeu (PE). A decisão relativa aos recursos próprios recebeu parecer positivo do PE, faltando a aprovação do Conselho, por unanimidade, e a ratificação por todos os Estados-membros, sem exceção.

A razão da oposição é o Regime de Condicionalidade (RC) para proteção do orçamento da UE (ver abaixo). A Eslovénia apoiou explicitamente Polónia e Hungria e outros países de leste parecem compreensivos. Mas a maioria dos deputados europeus e vários governos nacionais, em particular os nórdicos e o grupo dos chamados “frugais”, são irredutíveis na defesa da condicionalidade.

As consequências deste impasse são preocupantes: o extraordinário programa que é o PRR, uma revolução na forma de financiamento da UE num montante sem paralelo na História da União – símbolo de solidariedade, face às consequências económicas devastadoras da pandemia -, pode atrasar-se significativamente, prejudicando gravemente as economias mais afetadas e a Europa no seu todo.

Pior, no cenário mais pessimista, até ver inverosímil, pode nem ver a luz do dia, se os líderes europeus não conseguirem chegar a acordo.

Mas afinal do que trata o RC? Vamos ver isso já de seguida.

O acordo de 5 de novembro

O acordo a que deputados europeus e a presidência alemã chegaram na quinta-feira, 5 de novembro, que requer apenas maioria qualificada no Conselho para ser aprovado como regulamento da União, prevê a suspensão ou até o corte da atribuição de fundos europeus caso um Estado-membro viole as regras do Estado de direito (“rule of law”). Reza o artigo 1º do texto: “Este regulamento estabelece as regras necessárias para a proteção do orçamento da União em caso de violação dos princípios do Estado de direito nos Estados-membros”.

Ora a Hungria, sobretudo, mas também a Polónia (diz-se que por pressão de Viktor Orbán), reagiram e ameaçam vetar QFP e PRR. O PM polaco Mateusz Morawiecki comparou o mecanismo do Estado de direito à propaganda comunista. Em entrevista, a ministra da justiça húngara, Judit Varga, fundamentou a oposição com os seguintes argumentos: houve acordo sobre a condicionalidade na Cimeira de julho (que aprovou o PRR) e um novo mecanismo altera o Tratado, o que só é possível por unanimidade. As críticas ao país são uma pressão ideológica devido às posições húngaras sobre migração, multiculturalismo e o papel da família na sociedade. Trata-se, por isso, de chantagem.  

Também o primeiro-ministro Orbán referiu a esse propósito: “aqueles que protegem as suas fronteiras da migração não são considerados por Bruxelas Estados de direito”. O primeiro-ministro esloveno, por seu lado, considerou que a decisão sobre se há ou não violação do Estado de direito só pode caber a um tribunal (um argumento plausível).

E também pode colher a crítica ao regulamento com base na falta de critérios objetivos: “não há critérios e uma definição clara e objetiva dos princípios do Estado de direito. Não pode por isso ser usado como um instrumento para um mecanismo concreto sancionatório” (afirmação de Varga, segunda a qual “atualmente, Estado de direito é tudo aquilo de que «eles» não gostam a respeito da Hungria e da Polónia”).

Mas será mesmo assim? Não há critérios e definição clara dos objetivos? O artigo 2º do Regulamento proposto define da seguinte forma os conceitos envolvidos:

O Estado de direito refere-se aos valores da UE consagrados no artigo 2º do Tratado sobre o Funcionamento da UE. Inclui os princípios da legalidade, implicando um processo legislativo transparente, responsável, democrático e pluralista; certeza legal; proibição de arbitrariedade dos poderes executivos; proteção judicial efetiva por tribunais independentes e imparciais; separação de poderes; não discriminação e igualdade face à lei.

Pode ser indicativo da violação daqueles princípios:

Pôr em causa a independência do judiciário; não prevenir, corrigir ou sancionar decisões ilegais ou arbitrárias das autoridades públicas, incluindo as policiais; retenção de recursos financeiros ou humanos que afete o funcionamento dessas autoridades; não garantir a ausência de conflitos de interesses. Cabe ainda nessa categoria a limitação da disponibilidade e efetividade e de soluções legais e vias processuais para a tutela de direitos ameaçados, incluindo aí os obstáculos à execução dos julgamentos e as limitações impostas a uma investigação efetiva, à acusação ou à punição de violações da lei.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, aliás, a clarificar, com vigor e rigor, as exigências inerentes ao respeito do Estado de Direito e à preservação da independência do judiciário, como o atestam acórdãos, ainda recentes, em processos como “Associação Sindical dos Juízes Portugueses” ou as ações por infração contra a Hungria e a Polónia.

A quebra desses princípios afeta ou põe seriamente em risco uma gestão financeira sólida e saudável (sound) do orçamento da União ou a proteção dos seus interesses financeiros de forma direta. Esse dano ou ameaça de dano podem respeitar a:

Um funcionamento inadequado das autoridades nacionais que executam o orçamento europeu; idem das autoridades responsáveis pelo controlo financeiro, supervisão e auditoria; dos serviços de investigação e procuradoria pública em matéria de fraude ou corrupção da lei europeia; e outras condições descritas no artigo 3º do regulamento acordado, entre as quais, curiosamente, a cooperação efetiva e atempada com o OLAF, órgão europeu de luta antifraude, e com a recém criada Procuradoria-geral europeia.

Na verdade, mais do que falta de objetividade das condições previstas, julgamos estar-se em presença de condições (talvez) demasiado amplas, nalguns casos de difícil apreciação (reter recursos? , funcionamento adequado de autoridades nacionais?).

Considerando existir motivo para tal, a Comissão notifica o Estado-membro em causa, o qual tem até 3 meses para reagir e propor, se assim o entender, medidas corretivas. A Comissão tem depois um mês (indicativo) para tomar uma decisão, podendo propor as medidas adequadas ao Conselho, que tem um mês para as adotar (excecionalmente até três meses). A decisão dos ministros reunidos em Conselho é tomada por maioria qualificada, podendo emendar a proposta da Comissão.

Os Estados objeto de medidas podem a qualquer momento corrigir a situação, pondo termo às sanções. E que sanções podem ser essas?

Desde logo, elas têm de ser proporcionais. Nos termos do artigo 4º do regulamento, devem ser determinadas tendo em conta o impacto real ou potencial das violações e, quanto possível, ser dirigidas às ações afetadas por essas violações. Como exemplo de sanções possíveis, refira-se a suspensão de pagamentos, a proibição de assumir novos compromissos, de receber empréstimos ou outras vantagens; a suspensão ou redução das vantagens garantidas por um instrumento do orçamento europeu; a suspensão da participação em programas comuns; a redução de pré-financiamentos.

São medidas demasiado estritas? Condições demasiado vagas? Ou exigentes? Prazos excessivamente curtos?

A verdade é que o PE, sem dúvida o responsável maior pela decisão tomada, quer evitar que se repitam situações como as dos processos ao abrigo do (célebre!) artigo 7º do Tratado da UE abertos contra a Hungria, em 2018, e a Polónia em 2017, que se arrastam indefinidamente. Essa é provavelmente a sede correta para defender o Estado de direito na Europa, mas os obstáculos políticos e institucionais que se lhe opõem levaram as instituições e a maioria dos Estados-membros a procurar novas soluções – as ações por incumprimento e o agora em discussão RC.

Que conclusões tirar? E que caminhos estão disponíveis para ultrapassar o impasse?

As soluções possíveis

De momento, as posições estão extremadas. Para a UE, o momento não podia ser pior, considerando a extrema necessidade da generalidade dos países europeus de dispor com urgência de apoios extraordinários para fazer face à crise económica provocada pela pandemia; sem falar do risco de a União entrar em 2021 no regime de duodécimos, quando cada euro conta ou pode contar na luta contra a recessão.

Orbán e o seu congénere polaco, a que agora se junta Janez Jansa, PM esloveno, prometem resistir. Há sinais de que não será bem assim. Do lado europeu, são muitos os irredutíveis. Também Portugal, com a sua presidência à vista (e bem gostaria de não “herdar” esta querela), defende, pela voz do primeiro-ministro, a irredutibilidade dos valores europeus da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito.

Como será então resolvido, se é que o vai ser, este impasse?

Há várias ideias em discussão.

Um clássico europeu é o esclarecimento do significado de certas normas ou propostas legislativas, através de uma declaração política para o efeito, que declare a natureza jurídica, e não meramente política, da condicionalidade.

Pode igualmente ser melhor esclarecido o alcance de algumas das previsões contidas no regulamento, como por exemplo os critérios para verificação da condicionalidade, as condições para aplicação das sanções ou a natureza destas. Ou então, tornar-se mais imperativo um mecanismo de oposição, previsto, que permite o recurso ao Conselho Europeu, em caso de dúvida sobre a proporcionalidade das medidas.

Pode a presidência alemã suavizar os termos do RC, ou as sanções, ainda que isso pareça difícil face à posição intransigente de alguns países e dos deputados europeus.

Talvez os primeiros-ministros polaco e húngaro recuem no veto absoluto, aceitem um compromisso ou algo em troca (reforço dos fundos, por exemplo). É possível, talvez mesmo provável.  

Outra via, que nos parece muito perigosa, é optar por excluir aqueles países do acesso ao PRR, optando por uma cooperação reforçada, ou até por um acordo intergovernamental que os exclua, sem pôr em causa a sua pertença à União. Já foi feito (recorde-se o chamado Tratado Orçamental de 2012), mas seria um processo moroso, cujas cicatrizes tarde ou nunca sarariam no tecido frágil da construção europeia.

Miguel Poiares Maduro, por seu lado, sugere a introdução de um mecanismo de apelo rápido ao Tribunal de Justiça da União Europeia, para eventual aplicação de sanções, que responderia à crítica segundo a qual a avaliação do cumprimento da rule of law é aferida judicial e não politicamente. Seria uma espécie de medida cautelar, complementada por um mecanismo interno de controlo pelos Estados para garantir que os fundos não são capturados por interesses económicos ou políticos ilegítimos.

Mecanismos de tipo cautelar já existem, em situações de urgência, para defesa do interesse público, no âmbito de ações por incumprimento movidas pela Comissão contra qualquer Estado-membro por violação do direito da União. No atual quadro dos Tratados, tais medidas provisórias só podem, aliás, ser usadas no quadro e como garantias de resultado final de um processo principal. E resta saber se permitiriam, nesse contexto processual, atingir os resultados visados.

Tratando-se, em contrapartida, de uma via de recurso inovadora, não se vê como possa ser consagrada sem alteração dos Tratados ou do Estatuto do Tribunal de Justiça da UE, o que, requerendo a unanimidade dos Estados-membros, a condena a uma aspiração adiada por muito tempo!

Ora, o tempo urge e os caminhos não são infinitos, mas a UE, as suas instituições e os responsáveis políticos dos Estados-membros devem encontrar soluções com celeridade.

Os cidadãos europeus dão sinais de grande cansaço e as promessas de julho não podem ficar adiadas eternamente.

Versos da panfolia 93

O MAIOR IDIOTA DE TODOS SOU EU!

Sinto-me o mais parvo dos parvos quando os parvos me confundem.

O mais triste dos tristes quando os tristes me entristecem.

Sinto-me confundido com a confusão do discurso

de políticos, influenciadores, empresários, bêbados.

Sinto-me frágil com a fragilidade dos fracos, dos pobres, dos miseráveis

que não escolheram sê-lo, é certo, sem noção

do incómodo que causam.

Sinto-me tonto com o nevoeiro das mentiras,

dúctil, pesado de tão leve e o contrário também,

sinto-me agoniado com a agonia alheia,

perguntando-me porque sofrem todos os que estão a mais,

vão-se embora, desistam, desapareçam, façam-se invisíveis,

deixem-me à vontade neste local pois

tenho direito a ser feliz.

Mas não me sinto feliz

com a felicidade alheia,

ao invés, seus cretinos,

de ofuscarem o meu brilho, de atalharem o meu sucesso,

vindes aqui (não mereceis sequer um vêm aqui) atrapalhar,

fingir-se heróis, ou génios, ou talentosos de qualquer coisa que vai

da bola ao berlinde do bolo ou bule da mania à teimosia

e não passa sequer disso.

Dêem-me idiotas para me sinta idiota, e nessa idiotia

me compraza.

O mais idiota de todos.

(um original escrito à pressa por António A. Eliecer)

Versos da panfolia 94

50º à sombra

(21/08/2019 – Poemas do crepúsculo)

O calor tropical atravessou Lisboa

Sem lhe tocar.

No hemisfério norte corpos gordurosos

Ardem

E a vida humana é igual

A outra vida qualquer.

A outra morte qualquer.

Uma massa de ar quente

Pesado e suja

Subiu dos lados do Sahara

Pelas portas do fundo da Europa

E bateu ao de leve

Na fronteira portuguesa,

Espanha arde

Nenhum Pueblo escapa

Vingado 1580

Nem as laranjas se salvaram.

Já ninguém fala no aquecimento global

Não é que não haja aquecimento

Mas agora é terminal.

O termómetro acabou de tocar nos 60 graus

E a água do mar na Caparica

Começou a fumegar.

Os lisboetas

Alcandorados aos miradouros da cidade

Do castelo de são Jorge

Ou no cimo de sintra na serra

Contemplam o ocaso

E o esquecimento.

Animem-se portugueses

Já só faltam vocês,

Como em tempos de humanidade

Voltaram a ser pioneiros.

Os primeiros a estar sozinhos

Valente povo nação infelizmente

Não imortal,

Meu país das maravilhas,

Portugal.

(da serie dantes já era assim

de Pajorodalsa)