EURATÓRIA

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Monthly Archives: Dezembro 2020

Versos da panfolia 89

A humanidade deslizou por uma encosta

Alçada ao último passo da falésia

A contemplar o abismo e a finitude.

E se não fosse o caso de ser rude

Eu diria nesta fase de tristeza

Informe ser o tempo da firmeza.

E nos mares os barcos não navegam

Encalhados em plástico e palhinhas,

E a maré galga diques sucessivos.

E se ainda por um fio nos vemos vivos

E os nossos filhos pedem por futuro

O fim dos tempos mostra-se maduro.

Uma gaja de fama duvidosa

Alcança um patamar sem paralelo

O rosto branco, fino, frágil, nu.

E se não fosse mestre de kung-fu

Adulada rainha, presidente

Acabaria mito, igual à gente.

Já não há volta a dar

Senão chorar. Já não nos resta nada

Senão medo. E um desistir mais cedo

(gentilmente cedido por A.)

Versos da panfolia 90

Perdi-me na metafísica

de um lugar onde não estive

a caminho de onde vim

sem poder voltar atrás.

Olhos sem íris na cara

mãos fechadas sobre o peito

Venho de onde nunca estive

chego onde nunca estarei.

(verso cedido por Sabre)

BREXIT

A 16 dias do final do prazo, impõe-se (ou pelo menos pode dar jeito) uma atualização

  1. Seja qual for o resultado das negociações, haja acordo – ou nenhum acordo -, o Reino Unido (RU) e a União Europeia (UE) não terão o mesmo nível de acesso ao mercado um do outro. Ora a UE, com os seus 448 milhões de cidadãos (maior mercado único livre do mundo), é de muito longe o maior parceiro comercial do RU (67 milhões de habitantes): em 2019 exportou para a União 43% do total das suas exportações (294 mil milhões libras), e importou 52% de todas as importações (374 mm de libras).
  2. O objetivo principal das negociações (ainda) em curso, é a supressão das barreiras tarifárias entre as duas partes, sejam elas taxas aduaneiras ou as chamadas medidas não tarifárias (quotas e proibições de importações ou exportações, barreiras sanitárias, fitossanitárias, ambientais, de segurança pública, entre outras).
  3. Sem acordo, os produtos dos dois lados passarão a pagar as tarifas aduaneiras determinadas pelo Organização Mundial do Comércio. Consequências? Produtos mais caros, diminuição das exportações, dificuldades nas fronteiras.
  4. As tarifas não são o único tema, longe disso. O que está em causa inclui uma lista tão longa que não cabe no espaço de um post: direito de circulação dos cidadãos britânicos e europeus, prestação de serviços financeiros britânicos na UE (sobretudo), pescas, aviação, projetos de investigação e tantos outros.
  5. A bloquear as negociações até há pouco tempo, mais do que um elefante na sala, um elefante à solta, foram afastadas as normas da lei britânica (do mercado interno britânico) que renegavam cláusulas do acordo de saída (“withdrawal agreement”) aprovado em janeiro de 2020 pelas partes (sobre os controlos no mar da Irlanda). Sobram três pontos, conhecidos à saciedade.
  6. Pescas. Os pescadores do norte do continente, em particular franceses, mas também holandeses e dinamarqueses, capturam 35% do pescado (arenque, cavala e linguado, para além do lagostim), em águas da zona económica exclusiva (ZEE) britânica. A frota britânica captura 80% do peixe nas suas águas, só 13% nas de outros países europeus (valores de 2017). Percebe-se a importância para os pescadores do continente de continuar a pescar em águas britânicas, como se percebe a vontade dos britânicos de preservar e valorizar a sua ZEE. Mas há um dado adicional: o RU exporta mais de 70% do pescado e produtos do mar para a UE (1,34 mil milhões em 2018); conjugando com o ponto 3, é caso para perguntar quem ganha com o quê?
  7. Regulação (o famoso “level playing field”, ou patamar de igualdade). Os europeus exigem que o acesso ao mercado único respeite os padrões regulatórios aplicados na UE (o contrário também é verdadeiro) em matéria de concorrência, regras ambientais, sanitárias ou de direitos sociais. E exigiram uma cláusula dita “evolutiva”, que o RU parece (finalmente) aceitar: caso alguns dos padrões regulatórios em causa venham com o tempo a divergir substancialmente dos da outra parte, esta pode impor tarifas sobre as importações em causa, protegendo as suas empresas e refazendo o patamar de igualdade (“level playing field”). Falta estabelecer os critérios para determinar quando a regulação põe verdadeiramente em causa esse patamar; que procedimentos usar; e que medidas pode a parte prejudicada tomar. Tudo coisas fáceis (estou a brincar, claro). Mas talvez os pormenores possam ficar para mais tarde – desde que o patamar de igualdade fique desde já protegido de futuras mudanças.
  8. A governança do acordo futuro, ie, como serão resolvidos potenciais conflitos, parece o ponto menos controverso dos três.
  9. Meio mês para a saída do RU do mercado interno e da união aduaneira. A haver acordo, o Parlamento Europeu, terá de o ratificar ou rejeitar e só o poderá fazer depois de dispor do texto final, um documento que terá certamente centenas de páginas. Um processo cuja duração é normalmente de vários meses, terá de decorrer em poucos dias.
  10. Afinal, quais as probabilidades de um acordo? Na minha opinião, não há outra razão para ambas as partes terem ignorado sucessivos prazos estabelecidos por si próprias, salvo ambas precisarem desesperadamente de um acordo. Nenhuma quer ser responsável pelo caos que inevitavelmente ocorrerá a partir de 1 de janeiro de 2021, se entre o RU e o continente se reinstalar uma barreira alfandegária, regulatória, política e, sim, moral – afastando duas partes condenadas a viver juntas pela geografia e pela história.
  11. Ultrapassado o debate entre soberania britânica e integridade do mercado interno, como referia esta semana o FT, trata-se agora de chegar a fórmulas concretas sobre assuntos concretos. Mas, no final do dia, o importante é ambas as partes poderem “cantar vitória”.
  12. E não, os Impérios já não moram aqui.

Versos da panfolia 91

A BOLA WILSON

Passo a noite sozinho

Como se vivesse sem

E o Mundo, o Mundo todo, me tivesse dentro

E a mais ninguém.

Não é fácil, não é fácil:

Primeiro, fechar portas e janelas bem fechadas

Prako som fique lá fora

E não me cheguem ecos de paixões, amuos

Ou sequer de alguma demora.

Depois, desligar.

A televisão com as suas notícias de outras vidas

Os telemóveis e as chamadas indevidas

A campainha, não vá o homem da edp

Chegar-se ao pé e carregar e pedir para fazer a leitura

E depois logo se vê.

Mas eu não quero, sou sozinho

No Mundo.

Não contemplar o firmamento da janela do meu tormento

Pranão ver o rasto dos jactos modernos

Carregados de vidas humanas

Cheias de sentimento

(seja medo, vontade de chegar, comichão viageira).

Nada de rádio nem computador, pois claro,

Tinha-me esquecido do maior actor,

Artificial, digital,

Esqueço-me,

Quero ficar sozinho e invejo Tom Hanks,

Porra meu que sorte,

Também eu procuro a bola Wilson e não encontro,

Se a vir, sabes,

Hei-de desenhar um cometa

Que vai por aí sem companhia em busca do infinito.

É uma treta, sabes, não há infinito,

Só muita matéria negra

Solidão,

Como a invejo.

Corre a noite, estou sozinho e ponho a tocar na coluna

Um tipo morto,

Talvez Jackson, o pedófilo, ou o artista antes chamado Prince,

Todos solitários incapazes de se libertar da fama,

É tarde, quase manhã, é tarde

E agora escuto Leonard e é tarde,

De repente alguém desata aos murros à porta

Talvez seja o vento,

Talvez continue sozinho

Ou talvez não,

Cohen conhece uma mulher chamada Joana d’arc

Será assim que acaba, desligo a música,

Abro a porta e um ser humano,

Gordo, barbudo, papel na mão, Joana d’arc

não deixes, imploro Leonard,

Que isso me marque,

Mas é tarde.

Não estou sozinho.

Assino e vou dormir,

Disposto a tentar outra vez.

E juro que não estou louco.

(gentilmente cedido por PAS, um escrito de 2019, ainda ninguém usava máscaras na rua)

APÓS UM “ANNUS HORRIBILIS”, A EUROPA VOLTA AOS CARRIS

12 estações para um final feliz: Portugal no lugar do maquinista a 1 de janeiro 2021

2020 ficará na História como um dos anos mais difíceis e atípicos dos últimos cem anos. Mas há pelo menos 12 razões para acreditar que a Europa vencerá esta crise sem precedentes. Vamos ganhar o futuro!

1.      O mais importante sinal da solidariedade e coesão europeias é evidentemente a aprovação do “Próxima Geração Europa” (PRR): 750 mil milhões (MM) € para apoiar a curto prazo as economias afetadas pela pandemia. Desse valor, 390 MM serão subsídios, 360 MM empréstimos, a somar ao orçamento de 1,08 biliões € para os próximos 7 anos. Não faltarão recursos – e não, não são um presente envenenado, mas um sinal da união dos povos europeus, numa organização frágil por natureza, mas que resiste às intempéries populistas trazidas por um vento iliberal.

2.      O regulamento que prevê um regime de condicionalidade para proteger o orçamento da União foi preservado. O Conselho Europeu (CE) de dezembro, interpretando-o, determinou que a condicionalidade deve respeitar as identidades nacionais e a igualdade entre os Estados-membros (EM); ser subsidiária e proporcional; de causalidade clara entre as violações e o prejuízo para os interesses financeiros da UE; e entre outras considerações, o regulamento só se aplica às autorizações orçamentais do novo quadro financeiro, incluindo o PRR. Em suma: cautelas na condicionalidade, mas nem por isso deixa de se aplicar. Aposto – arrisco-me à derrota, bem sei – que não tarda voltaremos a ouvir falar dela.

3.      A coordenação europeia da luta contra a pandemia. Desde logo, a Europa assegurou a compra de vacinas em quantidades consideráveis, garantindo a sua disponibilidade para os EM e acesso equitativo a preços acessíveis: a vacinação é um bem público mundial. Do mal o bem que o resgata: está aberto o caminho para uma União (europeia) da Saúde, que responda depressa e melhor a futuras pandemias; para tal, a UE propôs um tratado internacional sobre pandemias, a estabelecer no quadro da OMS.

4.      No rápido Conselho Europeu, aprovada a redução interna líquida de pelo menos 55% das emissões de gases com efeito de estufa em 2030 (comparação com 1990). A meta final é o impacto neutro no clima em 2050, preservando, no passo, a competitividade europeia, as interligações, a segurança energética e o acesso acessível das pessoas à energia.

5.      A Europa contra o terrorismo. Contra a radicalização. Contra as ideologias que alimentam terror e extremismo violentos. Que apela à luta contra os conteúdos ilegais em linha; a iniciativas para compreender a disseminação de ideologias extremistas; ao intercâmbio europeu de conhecimentos, investigações e competências científicas; à conformação da educação e formação religiosas com os direitos e valores europeus (!); ao reforço da cooperação policial e judiciária em todos os seus aspetos – está a Europa inteira nos seus princípios fundamentais, na riqueza civilizacional que brilha como um farol (ainda brilha como um farol).   

6.      Também o Eurogrupo decidiu reformar o Mecanismo de Estabilidade, antecipando para 2022 a criação do apoio (backstop) ao Fundo Único de Resolução para resolver bancos falhados no contexto da União Bancária (lembram-se do BES?).  Estão criados 2 dos seus pilares –o mecanismo de supervisão e de resolução únicos -, falta o Esquema Europeu de Seguros de Depósito para consolidar o sistema financeiro e bancário europeus.

7.      Com a nova administração dos EUA, a parceria estratégica transatlântica volta a ser credível. O multilateralismo e a cooperação internacional regressam à ordem do dia.  Reformar a OMC. Repensar a NATO. Lutar juntos contra as alterações climáticas (voltamos a ter Paris…).

8.      A Europa convive há anos com uma vizinhança turbulenta e sofredora. A Turquia, por exemplo, é cada vez mais um problema. O Conselho Europeu condenou as ações unilaterais, provocações e retórica daquele país contra a União, EM e dirigentes europeus (máxime Macron), salientando embora a importância do diálogo. Foram reforçadas as medidas punitivas de 2019, num sinal cauteloso – acordo sobre migrantes oblige – mas firme da determinação e coesão europeias. Dikkatli ol başkan Erdoğan.

9.      Haverá nova agenda para o Mediterrâneo, com referência ao papel da sociedade civil e a importância de “respostas mediterrânicas específicas, numa estreita cooperação em domínios como o ambiente, conectividade, educação e cultura e os recursos naturais”. À volta deste Mar que tanto liga como separa, fonte de vida e causa de morte e sofrimentos mil, renova-se uma parceria com 25 anos, assente numa História milenar comum e numa geografia inelutável. Condenados que estamos ao entendimento.

10.  A UE adotou pela 1ª vez um regime global que visa pessoas, entidades e organismos (e Estados), que violem os direitos humanos, independentemente do local onde ocorram. Em causa genocídio, crimes contra a humanidade, tortura, escravatura, prisões arbitrárias, execuções extrajudiciais, violações ou atropelos sistemáticos. Aos visados será aplicada a proibição de viajar, o congelamento de fundos, a proibição de receber verbas de pessoas e entidades europeias. Direitos humanos cada vez mais centrais na ação da UE e da sua política externa.

11.  A Europa digital é um dos dois braços gémeos do plano europeu para a década (com o clima), elemento transversal do orçamento multianual da UE. Supercomputação, inteligência artificial, cibersegurança, competências digitais avançadas, hubs de inovação digital, contribuirão para a competitividade europeia na economia digital global, a soberania tecnológica, o bem-estar dos seus cidadãos. Para que o continente europeu não seja apenas o museu do Mundo, mas uma terra de progresso e paz.

12.  As migrações e os refugiados, desafio e necessidade, que requerem esforço, boa vontade, critérios e regras comuns para responder aos desafios gerados por um fenómeno a um tempo tão velho como o Mundo e tão recente e desafiador como as ondas de refugiados que num só ano (2015) trouxeram à Europa um milhão e 200 mil solicitadores de asilo.

Portugal assume em janeiro a presidência do Conselho da UE. Não é uma presidência de alto perfil como as duas anteriores, modificada a sua natureza pelas alterações do Tratado de Lisboa. Mas é ainda assim importante, desde logo para a própria União, que confia ao nosso país, a par de outros, as dificuldades, os progressos, os programas e os objetivos identificados neste dodecálogo. Não são os trabalhos de Hércules, são mais do que isso – e Portugal tem gente qualificada, uma diplomacia experiente, capacidade e conhecimento para levar a cabo a tarefa. Assim o espero.

Aos negacionistas, anti-globalistas, eurocépticos de todos os quadrantes: ninguém é uma ilha, no fundo somos todos fruto da mesma cepa.

(e o Brexit?… seria o 13º ponto. Aguardemos, com paciência inglesa)