- Uma pandemia não é um acontecimento frequente. Mas poucas tiveram o alcance, o impacto e as consequências (previsíveis) da resultante do SARS-COV-2, vulgo COVID 19. A peste negra, no século 14, provocada pela bactéria yersinia pestis, que matou mais de 75 milhões de pessoas. A vibrio cholerae, bactéria da cólera, cuja primeira manifestação global, de 1817, vitimou centenas de milhares. A gripe espanhola, causada por um subvírus da influenza, que não falava espanhol mas matou, em cerca de quatro anos, mais de 50 milhões de pessoas no mundo inteiro, a maior parte das quais jovens adultos. E agora o COVID 19, cuja mortalidade se avizinha do milhão e meio.
- Este vírus mata sobretudo velhos, desculpem ser tão directo e cru. Entre os 18 e os 49 anos, apenas 10% adoecem com ele, passa a 22% acima dos 70 anos (estudo do King’s College). A maior parte das vítimas mortais têm mais de 80 anos, são também numerosas nos 70’s e ainda bastantes acima dos 60 ou mais anos. Abaixo disso, as mortes são episódicas – o que não quer dizer que não se morra ou fique com lesões para o resto da vida.
- Ontem morreram 91 pessoas, o maior número num dia desde o início da pandemia. A maior parte são velhos, muitos a viver num lar. Morreram, provavelmente a maioria, num hospital, sozinhos. A última cara que viram não foi bem uma cara, foi uma máscara. A última mão que os tocou não foi bem uma mão, foi uma luva. A última voz que ouviram chegou-lhes abafada e seca, desumana, pudera, é difícil ser gentil vestido de máscara, viseira e fato de astronauta.
- Fecharam os olhos pela vez final, provavelmente em agonia, com os pulmões em falência ou uma confusão de trevas na cabeça, longe das suas casas, privados do amor que só os que nos amam podem dar. Pergunto-me: no que terão pensado? Que última imagem, que voz derradeira soou, que recordação de infância? A do filho pequeno, acabado de nascer, já crescido há tantos anos e de que não puderam despedir-se? Um jantar de família feliz quando havia jantares de família felizes? O pôr-do-sol de mãos dadas com o amor da sua vida, e que saudades meu Deus, e que saudades?
- Pergunto-me por vezes o que sonha quem sonha pela última vez. Aquele velho cujas rugas são palimpsestos de sabedoria e experiência, a agonizar numa cama improvisada de um hospital assoberbado por velhos moribundos de COVID 19, em decúbito ventral, intubado, sonha a cores? Verá ele o pai que teve e morreu a seu lado, na cama da casa onde sempre viveu e a quem deu a mão sem luva, que sorriu – enquanto chorava uma lágrima quente – quando lhe ouviu palavras ternas e, caramba, a recompensa por uma vida de dedicação e amor. O que me ensinaste, pai, o que me ensinaste…
- Não me entendam mal. Talvez tenha de ser assim. Talvez não haja outro remédio senão segregar os velhos, fechá-los em lares como gado (desculpem, foi o que me ocorreu), deixá-los a contemplar a falência dos seus dias, sequiosos por uma visita, ansiosos por um telefonema, desejosos de um gesto, de um toque amigo, de uma palavra que confirme a humanidade que ainda sentem e o valor que não perderam. Entrementes, encostam-se uns aos outros (não, não vou repetir como gado, desculpem), olham para a televisão ensimesmados e esperam. O quê?
- Ah, isso foi antes do COVID-19. Agora, à medida que morrem, aqui e noutros locais do Mundo, já são 1 330 205 (dados das 15h30 do dia 17 de novembro de 2020), a maioria velhos, nem sequer essa visita, esse gesto, esse toque – e a visão física dos amores que têm – lhes é permitido. Tossem, têm febre, ficam confinados, adoecem, vão para o hospital sozinhos, acamados, pioram, soçobram, morrem. Sozinhos. No fundo, não mudou muita coisa. Os velhos, na nossa sociedade egoísta e apressada, são cada vez mais um incómodo. Ouvimos os números diários de mortos e encolhemos os ombros, num gesto que expressa à vez o espanto, a preocupação e a fadiga com isto tudo. Os velhos.
- Recordo várias visitas que fiz a lares recentemente, ainda este vírus não era senão um cenário de ficção científica, lembro as salas cheias de seres humanos envelhecidos, frágeis, muitos de olhar fixo num horizonte vazio, ou num ecrã de televisão onde uma tal Cristina falava com estridência, o que vem a dar no mesmo. Recordo a tristeza de ver naqueles locais sem esperança, salvo a espera pela redenção – a morte como redenção? – dezenas de velhos sentados em círculo numa sala, como se tivessem voltado à pré-primária. Gentis cuidadoras e cuidadores tratavam deles, é certo, mas impotentes para lhes dar o essencial: amor e um sentimento de valor. De se sentirem humanos.
- Quando é que deixámos de nos importar? Não me refiro a cada um de nós individualmente, somos certamente todos muito caridosos, vem-nos uma lágrima ao olho com facilidade. Mas como colectivo, como seres humanos? E desta reflexão tenho de excluir os milhares de cuidadores informais que existem neste país e deixaram empregos, uma vida confortável, para se dedicar justamente à tarefa de dar aos seus familiares um fim de vida condigno e humano. Mas os outros, nós todos?
- Porque não estamos a discutir com veemência e sentido de urgência o que fazer para dar aos últimos dias destes nossos pais e avós, ou simplesmente amigos, a dignidade e o sentido de valor que merecem? Por que razão não é esse o principal debate das nossas sociedades, a humana preocupação com os nossos irmãos humanos que vivem vidas inteiras, às vezes difíceis e sofridas, e que agora, quando as forças já são poucas e a vontade fenece, sentem o abandono? Porque preferimos ignorar o seu sofrimento, com a desculpa simples de que “não há nada a fazer”, “é assim porque é”, ou “a maldita pandemia é a culpada”?
Sabem o que acho (e peço desculpa de achar isto)? No fundo, já não os consideramos bem humanos, fazem parte de uma espécie distinta, talvez a espécie senescente.