EURATÓRIA

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Monthly Archives: Julho 2020

Versos da panfolia, tomo 96

Chove lentamente sobre o teu cadáver

E ainda nem morreste.

Choram com vagar a tua memória

E ainda não esqueceste

Quantos te foram bons sem serem úteis

E quantos, dos inúteis, se fizeram bons

Sendo só fúteis.

E o que buscavas, amigo antigo,

Nunca encontraste.

Cantam brevemente o desgosto

De já te perderem

Mas apenas sabem

Quanto ora te devem

Por te terem perto

Tendo-te esquecido.

E o que buscavas, antigo amigo

Aqui tão perto.

(texto traduzido, cedido pelo poeta Bretmor Ed SA)

A CULTURA DO MEDO

(A Luta Necessária dos Moderados)

O nome de guerra é Cultura do Cancelamento. Pouco se tem falado dela em Portugal, apesar do termo ter sido considerado “termo do ano”” pelo dicionário Macquarie. Eu dou-lhe outro nome: CULTURA DO MEDO.

  1. Estou aos gritos? Estou. Porque a Cultura do Cancelamento provoca justamente o que o nome indica: medo. Impede o livre pensamento. Obriga a pensar duas ou três vezes (ou quatro ou vinte) antes de usar certas expressões ou palavras – na verdade, a bani-las do nosso pensamento.
  2. Resumindo muito resumido: a Cultura do Cancelamento (aka Cultura do Medo) consiste em “cancelar” o apoio a alguém, político, desportista, intelectual, empresa, personalidade pública, “influenciador”, no limite quem quer que seja, por um comportamento, uma opinião, palavras que alguém – a “opinião pública”, um grupo de fazedores de opinião, “seguidores” numa rede social – consideram errados. E por isso são-lhe cancelados a reputação, o acesso a determinados bens, o emprego, os contratos, ou outra coisa qualquer.
  3. No fundo, trata-se de um boicote, quase sempre virtual, com as redes sociais em destaque. Sendo elas, hoje em dia, o espaço público por antonomásia, porque tudo lhes chega, nelas tudo se espalha (até alimentam os órgãos de comunicação social tradicionais) e expande, ser delas banido significa o ostracismo. E uma inevitável perda de reputação.
  4. A Cultura do Cancelamento provoca medo. Pensar menos, pensar mal. Não pensar. É a Cultura do Medo. Pior, porque nos intima a banir certas ideias do discurso público. E até do privado. Deixamos de poder chamar as coisas pelos nomes. Pior (ainda): ao dar um nome às coisas, arriscamo-nos a pisar um risco qualquer. Quem o desenha? Ninguém. Mas ele está presente no nosso dia a dia, quando falamos, quando postamos, quando twittamos.
  5. A Cultura do Medo vai mais longe: proíbe a discussão dos assuntos que os seus defensores consideram não passíveis de discussão. Sejam quais forem. 2 exemplos: J. K. Rowling defendeu em tweets a ideia de que os transexuais – em concreto, as mulheres trans – não são verdadeiramente mulheres, já que o género humano é determinado pela biologia e não depende da vontade de cada um. Começou de imediato o processo de cancelamento, com acusações de incitamento ao ódio (contra os trans); milhares deixaram de a seguir.
  6. Riccardo Marchi, professor do ISCTE, escreveu o livro “A Nova Direita Anti-Sistema – o Caso do Chega”, em que defende, entre outras coisas, que o Chega não é de extrema-direita. Um conjunto de investigadores publicou um artigo, indignado pelo facto da comunicação social lhe dar espaço e voz. E mais: que se trata da higienização da imagem do Chega, posição inscrita “nas continuidades histórias e estruturais antidemocráticas e coloniais”.
  7. Concorde-se ou não se concorde com as ideias de Rowling (disclaimer: nunca gostei do Harry Potter, sou mais Senhor dos Anéis) e com a tese de Marchi, com o que não é possível concordar é com o seu “Cancelamento”! Discutamos as ideias, não as “cancelemos”.
  8. Além disso, este movimento gera o movimento oposto, radicalizando-se as posições de cada um. Foi o caso da carta assinada por Rowling, Margaret Atwood, Salman Rushdie (que sabe umas coisas sobre o assunto) e mais 150 personalidades contra a “restrição do debate” – e a “voga de envergonhar e ostracizar, numa tendência de dissolver questões complexas (…) numa moral cega”. E já tiveram resposta. Isto assim nunca mais acaba e ninguém cede.
  9. Entendamo-nos: detesto piadas de mau gosto, e ainda mais mau gosto a sério, sejam racistas, sobre o papel de homens e mulheres na sociedade ou orientações sexuais. Desprezo, muito, o bullying sobre os que não se podem defender.
  10. Mas uma coisa é a ignorância e a incultura, que podemos (se quisermos) ignorar, ou condenar discursos de incitamento ao ódio ou à violência, outra é a Cultura do Cancelamento, que gera Medo e provoca auto-censura, não educa para os valores, não contribui para a regeneração da sociedade, não constrói – é puramente destrutiva.
  11. O que pode fazer um moderado? Justamente chamar à razão quem cancela, apaziguar quem é cancelado, explicar do que se trata e por que razão é errado, dar opinião sem medo. E, como aqui faço, opor-se à Cultura do Medo.
  12. O Medo destrói o pensamento: esta frase, que recordo de um velho livro de ficção científica (Dune), salienta bem o aviltamento da mente humana causada por tendências, aliás antigas, para policiar o pensamento, a liberdade de expressão, a livre partilha de ideias entre gente civilizada. Contra o Medo, com coragem.

Reflexões sobre um futuro incerto:

Versos da panfolia, tomo 97

Madrugada

A noite

Com inveja do dia

Veste-se de uma palidez breve

E sugere alguma claridade.

Nega assim o seu próprio negrume

O mistério das seculares vigias

As horas de folias

No anonimato escuro

Que é o seu.

E aos poucos,

No engano cego de ser o que não é

De si nasce a luz que se escondeu

Cresce o grito da pressa de estar vivo,

E acordam em uníssono

À luz do sol nascente convocado

As almas que a dormir

Deixaram o mundo sossegado.

(poema gentilmente cedido por A.A. Eliecer)

O liberalismo moderado

caput II

Sou liberal. Tenho orgulho nisso. Neste primeiro texto dedicado ao liberalismo, tentarei, modestamente, explicar o que significa para mim ser liberal. E liberal moderado.

Sou moderado, como escrevi no caput 1 desta série, podendo sê-lo de forma radical se tal for necessário para defender soluções equilibradas e sensatas, contra os radicalismos que assolam as nossas sociedades ocidentais.

Sou, por isso, radicalmente moderado.

Sou de direita. Tenho orgulho em sê-lo. Não explicarei neste texto o que significa para mim ser de direita, fá-lo-ei com tempo e pausadamente noutra ocasião. Registo apenas que sou a favor de um Estado necessário – tão pequeno quanto possível, tão interventivo quanto necessário – e porque não considero que a liberdade no plano dos costumes, embora desejável numa perspectiva de liberdade de escolha individual, deva ser absoluta.

A minha grande causa no plano político e social é a liberdade. Liberdade de agir, de pensar, de estar, de ser. Com justiça social, é evidente. Sem pactuar com a ideia, muito de um ultraliberalismo radical – vulgo neoliberalismo -, de uma economia deixada a si mesma (e aos dominantes), com um mercado sem regras e onde vigore a lei do mais forte. Na verdade, a liberdade não pode ser mais livre para uns do que para outros.

E aos costumes? Aos costumes digo, como a tudo o resto: moderação, sempre. Liberal, com juízo, sem destruir o edifício moral que tantos séculos levou às nossas sociedades ocidentais a erguer, e tanto sofrimento, e dedicação, e inteligência. Aceito as opções de cada um, atento o respeito pela respectiva liberdade, sempre e quando essas opções não ponham em causa as regras sobre as quais se funda a moral social dominante.

Porque, não tenhamos dúvidas: há sempre uma moral social dominante. As regras morais que a estruturam (e dela brotam) podem ser impostas por uma elite ou classe predominante ou resultarem de uma evolução feliz, baseada em princípios, valores, ideais e normas (jurídicas) geradas, como refiro no parágrafo anterior, ao longo de séculos – forjadas na luta, por vezes longa e difícil, entre visões contrastantes sobre o que é moral e o que não é.

A civilização que é a nossa foi-se fazendo nessa tensão permanente e em cada época histórica determinada, entre o que era e não era moral nesse tempo – entre a escravatura como coisa natural do ser humano e a escravatura como abominação, entre a inferioridade assumida da mulher e a revelação da dignidade igual da condição feminina, entre a pedofilia como prática comum e a pedofilia como um crime, entre o racismo coisa natural e o racismo coisa abjecta, entre a guerra como prática inerente aos homens e a guerra como sinal de barbárie. Nessa luta quase sempre entre contrários medrou, tímida e de forma desesperantemente lenta, por vezes voltando a murchar, mas persistente, teimosa, bela, a flor da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, da igualdade (que não do igualitarismo, semente da opressão), da segurança; numa palavra, da dignidade humana.

Essa luta, que voltará aqui, noutros textos, travaram-na Gigantes (sobre os ombros dos quais tímida e timoratamente ambiciono alcandorar-me, confesso sem pudor): guerreiros contra a barbárie; políticos (sim, porque não?) pela justiça; filósofos filosofando sobre a verdade; pensadores com uma visão; poetas com um sonho; gente vulgar com coragem.

Mas a moral social dominante que construímos no Ocidente – e não me venham dizer que não há civilizações mais evoluídas do que outras, pelo menos num tempo histórico determinado – sobre os ombros desses Gigantes, é uma frágil construção que facilmente desabará se a não protegermos, se não lutarmos por ela, se não combatermos os seus inimigos. Se não formos, desculpem-me a presunção, também Gigantes… bom, pelo menos, se não estivermos de pé.

Quem são esses inimigos? O radicalismo. O igualitarismo doutrinário. A autocracia. Os déspotas iluminados. O politicamente correcto. O relativismo moral. Os sábios que tudo sabem. Os ignorantes que tudo sabem (note-se que os sábios que só sabem algumas coisas, mas que as sabem muito bem, embora presumindo saber mais do que isso – à laia do sapateiro que vai além da chinela – são completamente diferentes dos ignorantes, que também tudo sabem e nem sequer são sábios). A síndroma da carneirada, com todo o respeito pelos carneiros, que não sabem sê-lo. A burocracia, a corrupção e a inação da gente boa.

Com tantos inimigos, que fazer? Recordo: defender a liberdade com todas as nossas forças, combater o radicalismo, seja de direita, porque é autoritário, seja de esquerda, porque é anti-natural, afirmar a moderação como um valor em si mesmo. E decisivo.

Os sete sins do liberalismo moderado

Sim à atitude existencial como definição do liberalismo (definido por Raymond Aron como uma hierarquia de valores, com a liberdade à cabeça, conquistada pela ação do ser humano)

Sim à intervenção do Estado para permitir aos indivíduos o exercício da liberdade (do mesmo Aron)

Sim à intervenção do Estado sempre que necessário, forte – até muito forte – quando é preciso (=necessário), duro no combate aos inimigos da civilização, como a corrupção, eficiente a defender a soberania nacional, o respeito pelos valores da Nação portuguesa, a nossa língua, uma justiça célere e justa (sem pleonasmo), os velhos e os doentes – a saúde! -, um mercado equilibrado, concorrencial e aberto

Sim ao Patriotismo, não ao Nacionalismo (peço desculpa pelo primarismo dos conceitos, mas ainda não descobri ilustração mais clara – e rude), ou se quiserem, sim ao amor à Pátria, a um Portugal cristão (de matriz cristã, única cedência ao politicamente correto que estou pronto a fazer), europeu, orgulhoso de si e da sua história

Sim à globalização, realidade inelutável, e à cooperação com sociedades vizinhas ou amigas, que partilham a nossa visão do mundo e a moral social que é a nossa, com a União Europeia como referência e o desígnio transatlântico como aspiração (um retorno?)

Sim à liberdade individual no plano dos costumes, no respeito pela construção de princípios e valores em que assenta a civilização Ocidental

Sim ao recurso a todos os meios, no limite dos valores assumidos, da dignidade humana e dos direitos fundamentais, na luta contra todos os radicalismos

Os sete nãos do liberalismo moderado

Não ao radicalismo sob todas as suas formas

Não ao politicamente correcto sob todas as suas formas

Não ao Estado-leviatã (Hobbes, retomado por Tocqueville, ia), ao Estado que pesa na economia, que nacionaliza sem ser em última instância

Não ao egoísmo individual, à apatia política que despreza a intervenção pública em favor da atenção exclusiva ao interesse próprio (um pouco à laia de Tocqueville)

Não à catalaxia (Hayek: os mercados deixados a si mesmo, a ordem espontânea e o laissez-faire laissez passer em todo o seu esplendor) e ao Estado mínimo ou minarquia

Não ao libertarianismo moral, ao relativismo moral, ao vale tudo moral e ético

Não ao fim da esperança no progresso e na liberdade

Um aforismo liberal-moderado

Sou liberal porque sou livre, moderado porque sou racional, liberal-moderado porque aspiro a ser feliz.