Muita gente, e muito melhor do que eu, escreveu já sobre o despedimento de 160 profissionais do Diário de Notícias (e de outros meios da Controlinveste).
Por isso também, hesitei fazê-lo. O texto do Pedro Guerreiro, o do Miguel Carvalho (a devida comédia) que me chegou pelo Ricardo Alexandre, e tantos outros, dizem tudo. São pungentes, comoventes, revoltados. São belos e tristes, como todos os textos sobre pessoas escritos por gente inteligente e sensível.
Mas não podia não escrever algumas palavras. A razão principal resulta do facto de eu próprio, durante quase dez anos (não consecutivos) ter escrito naquele jornal. Uma coluna, primeiro, sobre a Europa, e depois sobre tudo, a política, os homens e as mulheres deste país, a vida… Com orgulho, escrevi sempre com orgulho, nem sempre bem, obviamente, talvez mais mal que bem, escrevi num jornal muito antigo, nobre, respeitado. E já agora, de ambas as vezes, recebi o convite da pessoa do Mário Bettencourt Resende, um homem bom, um fantástico profissional, um amigo; com honra, gosto e, já agora, com algum receio de desiludir, pois aquele era também um lugar de alguns dos nossos maiores – aquelas páginas têm peso.
E agora? O que diria o Mário? O que diriam – ou dirão – muitos dessas referências da nossa vida colectiva? É assim? Continuamos a dispensar a única coisa que nos define como povo, como nação, como colectivo, como identidade, como comunidade de origem numa simultânea cumplicidade de destino? Continuamos a tratar as pessoas como se não fossem pessoas?
A que nos condena isso? Não sei, suspeito: à ruptura crescente desses laços identitários.
Li e hesitei. Os silêncios. O pescoço curvado dos colegas. O desemprego no horizonte. O medo. O medo. A hipocrisia amarga e doce, mas necessariamente inevitável, do alívio (desta safei-me), carregada de culpa, de remorso e, uma vez mais, de um crescente temor com o futuro. Se eles são dispensados, porque não eu? O que me segura? O valor, acreditam… mas eles sabem do valor dos outros, conhecem-no, e se apesar disso eles foram…
Li e quase tudo o que se escreveu salienta a dor de quem recebe a chamada (venha ao meu gabinete), a mensagem (favor estar no gabinete..), o recado, ominoso (o director pede-lhe que vá ao gabinete…); justamente, claro. Como num luto, começa agora a fase da rejeição, ainda plena de adrenalina, de projectos grandiosos – juntamo-nos, um projecto novo, ainda sou jovem -, a que se seguirá o tempo da resignação – com algum dinheiro, reservas, subsídios -, e depois o desespero.
Não para todos, espero sinceramente que não para todos; talvez para ninguém? E é então que chegámos ao domínio dos Outros. Que é o nosso. O pior para quem sai é a compaixão de quem fica; ou de quem está de fora. Eles não querem a nossa compaixão, querem a nossa solidariedade; activa, de preferência, concreta, se possível. É isso que significa a palavra comunidade; que cabe na palavra nação; que fazem parte, ambas, da expressão ser humano.
Somos humanos. Safámo-nos. Estamos safos. Eles não. São nossos colegas, nossos amigos, nossos conhecidos. Trabalharam ao nosso lado, lemo-los inúmeras vezes. Vamos estar presentes, vamos dar-lhes a conhecer a nossa solidariedade, vamos partilhar oportunidades, possibilidades, alternativas, contactos, sei lá, vamos partilhar-nos com eles (não é bom português, eu sei).
Só assim estaremos à altura do legado de um diário centenário como o Diário de Notícias, o meu jornal. Por mim, por eles, pelo Mário, temos de nos lembrar que fazemos parte do mesmo grupo:
Somos todos seres humanos.