Há muitos anos – creio que na década de 90 – escrevi um artigo muito simples sobre a natureza do poder (político e partidário – ou político-partidário?). Não tenho bem a certeza, confesso, se chegou a ser publicado no jornal no qual na altura, com muito gosto e honra, colaborava – o Diário de Notícias. Agora, quase ao acaso de uma limpeza de ficheiros, revi-o e pareceu-me especialmente adequado aos tempos que passam; e como o “l’air du temps” se impõe, naturalmente, ouso partilhar essas reflexões antigas com os meus leitores deste blog e amigos do FB. Com um pedido de desculpas por qualquer coisinha…
Do Poder
Um homem que toda a vida fora rico e poderoso, sentindo-se morrer, chamou os dois filhos e disse-lhes: “Meus filhos, toda a vida fui rico e poderoso. Vivi sempre desconfiado e triste com medo de perder o que tinha. Prometam-me renunciar às posições de mando e poder, entreguem a quem precisa as riquezas supérfluas que vos couberem”. Engasgados, os filhos lá prometeram.
Após a morte do pai, o mais novo cumpriu a promessa. Renunciou a cargos na empresa familiar, entregou parte da fortuna aos pobrezinhos. Empregou-se em funções modestas, a ganhar o ordenado médio nacional. O malvado filho mais velho, porém, não quis saber: fez-se nomear CEO da holding paterna, envolveu-se em negócios imobiliários, tornou-se sócio do Grémio. E um dia, com naturalidade, viu-se Ministro. Só que dessa vez o irmão, até então modestamente resignado à aleivosia fraterna, revoltou-se: “Ainda não traíste suficientemente a memória paterna? Agora aceitas um lugar no Governo?”. Houve mosquitos por cordas e o filho respeitoso ameaçou com um escândalo na Imprensa. O irmão mais velho cedeu. Nomeou o outro Presidente de uma reputada empresa pública e devolveu-lhe assento, não executivo, no negócio familiar.
A harmonia voltou. A prazo, o irmão mais novo veio a conhecer o sabor amargo do sacrificio público. É a maldição familiar…
Moral da história? O Mundo dos viventes divide-se entre os que mandam e os que gostavam de mandar. O que é estranho, pois estes não fazem ideia dos sacrifícios a que aqueles estão obrigados. Os poderoso são os mais mal-entendidos dos seres humanos (digo-o sem malícia).
No Mundo democrático em que vivemos, os segundos, as massas cidadãs, pedem aos primeiros, as elites desinteressadas, que os representem. Rogam-lhes que prescindam da vida pessoal, do sossego e, quantas vezes, de cabedais, pelo bem comum. Convidam-nos a interpretar o sentido dos votos, de acordo com as regras constitucionais em vigor, reflectindo-os em políticas públicas correspondentes à vontade geral. Aqueles iniciam então dolorosa reflexão; enfrentam filhos e mulheres (ou maridos), discutem com os amigos. Sabem que aceitar é o fim da intimidade, réditos menos avultados, a vida pessoal esmiuçada. Pensam em jornalistas e inquietam-se: ah, aquela sisa antiga apagada das declarações… os anos de pensão de alimentos por pagar…
Pesam tudo bem pesado. E no fim, quase sempre, “seja o que Deus quiser”, dizem Sim ao bem público, Sim à Pátria agradecida, Sim pai “vou ser Ministro” após tantos anos de desesperançada espera.
Costumam fazer-se uns inquéritos a que poucos prestam atenção: pressupondo, com razão, os supracitados sacrifícios (vidé os ordenados “da vida privada” comparados com a miséria renascentista do óbulo público) e os riscos de ficar de carácter-nu face ao escrutíneo impiedoso da imprensa esfaimada, pergunta-se aos nóveis governantes “Porque aceitou o convite?”. Ora os membros de qualquer governo respondem à uma “para servir o país”. Ninguém confessa: “Por causa do Poder”. Ou porque “ajuda aos negócios”. Ou “sempre quis aparecer na televisão”. Ou mesmo “sonho em ser ministro desde pequenino”. Ninguém o confessa por não ser verdade ou não é verdade porque ninguém o confessa?
Tanta dedicação e altruísmo, o abandono das coisas terrenas e materiais em prol do bem público, impressionam. Os poderosos sabem que Lá, nos Sagrados do Poder onde tudo se decide, não há multidões que votam nem eleitores que questionam. Estão sozinhos entre pares e a sua (deles) consciência. Exeatur as delícias da privacidade, um luxo para sempre interdito. Vão ter de usar o carro público, de aturar motoristas e seguranças, de entrar pela sala vip dos aeroportos em vez de fazer, como toda a gente, o excitante percurso da classe económica para as filas das malas. No final do mandato, o curriculum ostentará para sempreo labéu “Ex-ministro”. E se a maldita “coisa pública” exigir novos esforços, eles dirão Sim, porque à Pátria não se recusam sacrifícios e é Portugal quem manda.
Tais mulheres (e homens) são a Raça em carne viva, honra lhes seja.
Se o leitor aspira ao martírio e quer entrar nesse escol de públicas virtudes, anote o caminho: inscreva-se numa juventude partidária e prepare-se para décadas a “puxar saco” (i.e. bajular) a quem não merece. Treine mímica gestual, leia tudo sobre “Como Convencer Audiências”, prepare fichas de citações eruditas, encha os jornais com informações sobre a sua vida pessoal. Se é tarde para a juventude, não desanime: faça o mesmo na secção sénior (só que mais depressa).
Poder? Só se não puder…
Paulo de Almeida Sande
Contemporâneo