A minha memória do VGM
Quando conheci o Vasco Graça Moura, eu já conhecia o Vasco Graça Moura.
Os poemas sobre o amor. Tinha lido o seu primeiro romance, quatro últimas canções. E aproximara-me de Dante Alighieri graças à sua extraordinária tradução da Divina Comédia.
Fisicamente, conheci-o no Parlamento Europeu, ele deputado recém-chegado, eu funcionário antigo, mais de 12 anos. Não simpatizámos, achei-o distante e soberbo.
Nunca abandonei os livros, as colectâneas dos seus poemas. Reli o Dante, atento à explicação do Mestre às portas do Inferno, onde a gente dolorosa já perdeu o dom do intelecto. Dom que lhe reconheci sempre, é óbvio.
Acompanhava as suas crónicas eivadas de paixão, militantes, claras como a luz – empenhadas.
Por razões profissionais, convivemos. Aos poucos, como um átomo que desequilibra num prado infinito de possibilidades, fomo-nos aproximando. Aprendi – ou reconheci – a importância de ser cavalheiro, que ele era acima de tudo.
Príncipe renascentista, repetem os obituários. Era isso. E mais:
Há palavras que devíamos usar pouco na vida: se aplicadas a preceito, têm um efeito quase performativo; mal utilizadas, mancham quem as pronuncia. É o caso da palavra senhor. O Vasco Graça Moura era um senhor. Um poeta, e de excelência, já se sabe. Um romancista de mérito. Um político apaixonado e de causas claras. Um intelectual acima da média dos intelectuais. Mas um Senhor, sobretudo. Renascentista, do seu tempo, de todos os tempos.
Teve a bondade de ir à minha despedida quando abandonei a função pública europeia 27 anos depois. Apresentou-me uma filha – e com que orgulho me falou dela! Ficámos de nos encontrar mais tarde, eu ansioso por aprofundar uma conversa sobre a natureza da sua poesia; sempre me parecera tributário de Jorge de Sena, que muito admirava. E além disso, gostaria de discutir com ele (discutir, a ousadia, como se eu fosse capaz disso), a aparente animadversão por Pessoa, o poeta “dos paradoxos gratuitos”… Queria talvez discutir o sentido do poema em que escreve
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
Dizer-lhe que as aves do anoitecer não serão pardas na sua solidão, povoada como está dos sonhos de todos os que o conhecemos, lemos os seus escritos, o apreciámos ou amámos pelo ser humano que foi, muito para além das honrarias e das palavras públicas de circunstância.
Sonhos coloridos, cheios, fecundos, a fazer da solidão um eterno cenotáfio.
Morreu um poeta. Um poeta não morre.
(publicado no dia da sua morte no FB, reeditado aqui, com ligeiras diferenças; este texto é integralmente escrito na ortografia pré-acordo ortográfico – nem podia ser de outro modo!).