EURATÓRIA

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Europa: que meios (3 e último)

Este é o terceiro de três posts sobre os orçamentos de que a União Europeia disporá nos próximos sete anos, sob a designação Perspectivas Financeiras Plurianuais (PFP), que mais não são do que um “tecto” para as despesas autorizadas: isto é, a União não poderá gastar mais do que os valores agora aprovados (sendo o agora uma incógnita, por ainda decorrerem negociações entre as principais instituições europeias, e desde logo entre o Parlamento Europeu e o Conselho).

Recordo o que escrevi no primeiro destes 3 textos: a União é responsável por menos de 2% do total da despesa pública europeia. As PFP deverão reduzir ainda mais o peso das políticas europeias.

Ora por vezes, ao discutirmos de que verbas devem os europeus dispor no âmbito da sua integração europeia, esquecemo-nos da existência de um quadro estratégico bem enunciado (tão bem enunciado quanto em risco de falhanço), a chamada estratégia 2020. Trata-se de definir um conjunto de objectivos para a União naquele horizonte temporal, baseado em:

 Crescimento smart tendo por motor iniciativas como a Digital agenda para a Europa; Inovação e “Youth on the move” (políticas de apoio à mobilidade dos jovens). Recursos sustentáveis para uma Europa eficiente, incluindo uma política industrial para a era da globalização. E um crescimento  inclusivo, com uma agenda para novas competências e empregos e uma plataforma europeia contra a pobreza.

 Os “headline targets”, ou objectivos de referência para 2020, são cinco:

 – Que haja 75% de pessoas entre os 20 e os 64 anos empregadas;

– Que 3% do GDP da União seja então investido em R&D; Clima: 20% de redução dos gases com efeito de estufa (pode chegar a 30%) em relação a 1990; 20% de energia proveniente dos renováveis e 20% aumento da eficiência energética

– Na educação, pretende-se reduzir o abandono escolar para menos de 10% e que 40% das pessoas entre os 30 e os 34 anos tenham o 3º nível de ensino.

– Que haja menos 20 milhões de pessoas na pobreza ou em exclusão social.

Era tendo em vista estes objectivos quantificados que a discussão devia estar a ser feita… mas não está.

Voltando às PFP, convém recordar algo que em Portugal parece cada vez mais fazer parte de algum mito urbano descartável e que é a persistência de verbas consideráveis à disposição do país para o seu desenvolvimento e a correcção dos desequilíbrios e assimetrias nacionais; a escutar muitos dos que escrevem diariamente sobre a União, parece que esta condenou o nosso país ao ostracismo e que nem mais um euro (europeu, passe a redundância) entra em Portugal como fonte de investimento para a recuperação da nossa economia. Parece, repito, a escutar tais trovadores, que a fonte secou definitivamente … ou que, pelo menos, muito boa gente a decidiu esconder atrás de um véu de esquecimento. Porque será?

 Para dar uma ideia sobre o que estou a falar, recordo as verbas disponíveis para Portugal, no âmbito do QREN em vigor (período 2007-13): um total de 20,193 MM€ (com 2716 M€ em 2007 – 3058 M€ em 2013). A questão é pois simples: como utilizar o melhor possível esses recursos. Até porque (e aqui sim), as verbas para a política de coesão para Portugal deverão diminuir cerca de 10%.  

O essencial é gastar melhor. Claro que me parece óbvio que os recursos disponíveis – aqueles que os Estados querem impor, em nome da austeridade -não são os adequados, quer quantitativa quer qualitativamente, para a situação que vivemos.

Mas mais do que o valor, efectivamente pouco consistente, há também necessidade de melhorar as condições da eficácia do orçamento europeu – e do seu planeamento de longo prazo. Por exemplo:

Ter em conta as situações de investimento menos eficiente, como no caso de haver falhas de mercado; garantir o valor acrescentado da União e o efeito multiplicador da sua intervenção, tentando mobilizar investimentos várias vezes superiores; acumular capital com rendimentos e pagamentos usados de novo no período de programa, (como exige o PE); assegurar transparência na orçamentação, na delegação de gestão, na atribuição de fundos, na monitorização da implementação, harmonização e simplificação; racionalizar e integrar os instrumentos financeiros que visem produtos similares. Resumindo, trata-se de aprofundar uma visão integrada entre os instrumentos e o valor-acrescentado europeu e os instrumentos similares utilizados ao nível nacional/regional, muitas vezes co-financiados por fundos estruturais.

 Quanto às fontes de rendimento que respeitam às receitas próprias da EU, existem muitas propostas: um IVA “europeu” e uma percentagem da taxa sobre as transacções financeiras. O PE defende uma reforma aprofundada do sistema de recursos próprios que reduza a quota de contribuições baseadas no Produto Nacional Bruto (PNB) para o orçamento da UE a um máximo de 40% e extinga gradualmente as deduções e mecanismos de correcção existentes.   A importância de uma reforma profunda do sistema de recursos próprios tem também a ver com aspectos identitários, visando uma União que sirva os cidadãos, com obrigações e direitos de parte a parte.

 Em suma, a Europa precisa de aprofundar a sua integração. E isso passa pelas PF plurianuais. Não porque queira gastar mais, mas porque precisa de gastar melhor. As políticas europeias só são uma mais valia quando beneficiam todos em conjunto.  

 

Um buraco suíço no meio da Europa?

Notícia de hoje:

“O governo suíço decidiu hoje manter durante mais um ano as restrições à entrada de imigrantes da Europa central e oriental, alargando-as a partir de Maio a todos os cidadãos de países da União Europeia”.

Três comentários rápidos:

O Governo suíço evoca a cláusula de salvaguarda prevista no artigo 10º do acordo de 2002 de livre circulação de pessoas entre a União e a Suíça; tem todo o direito de o fazer.

A controvérsia arrasta-se há algum tempo, havendo crescente contestação na Suíça aos trabalhadores estrangeiros; mas o resultado prático da aplicação da cláusula de salvaguarda não deverá ser grande (estimam-se 2500 autorizações a menos em mais de 50.000 por ano), pelo que se trata sobretudo de uma questão de princípio.

A Suíça beneficia de inúmeros acordos sectoriais com a União e pretende ver alargado o seu âmbito a novas áreas como o mercado da electricidade e o de serviços; é provável que essas pretensões sejam seriamente prejudicadas por esta iniciativa.

 

 

Europa: que meios (2)?

Como referi, a União Europeia debate-se com um (mais um) problema: não foram aprovadas as perspectivas financeiras que definirão, entre 2013 e 2020, o total de despesas a fazer nas mais variadas políticas europeias.

E porquê? Porque o acordo a que os líderes dos Estados-membros chegaram reduz o limite das despesas, pela primeira vez na história do planeamento financeiro da União (isto é, desde 1988). E porque o Parlamento Europeu considerou que a proposta em causa não promove o crescimento.

Porquê estes cortes e porquê esta pressão? Porque os referidos líderes consideram que a austeridade e contenção a nível da generalidade dos Estados membros deve ser replicada ao nível da União. E isso faria todo o sentido se não se estivesse a comparar alhos com bugalhos ou, talvez, o transiberiano com a linha de cascais.

E porquê? Porque 98% da despesa pública na Europa – de 6 biliões 103 mil milhões € em 2011 (dados do Eurostat ) – é da responsabilidade dos Estados nacionais, sendo apenas 2% a da União. Noutras federações, como os EUA (63%) ou o Canadá (37%), a situação é bem diferente; e mesmo retirando a protecção social e a saúde, a despesa comunitária não ultrapassa 3,5%! Além do mais (e o mais é já bastante), cerca de 76% do orçamento europeu é gerido por autoridades nacionais e regionais, só 22% pelas instituições da UE (2% de OI’s e países terceiros). Finalmente, com estas perspectivas financeiras o orçamento da EU não ultrapassa 1% do PIB europeu!

Porquê então? A resposta é simples: não se trata de gastar mais ou menos, mas de gastar melhor. O valor acrescentado das políticas europeias e da despesa gerada e gerida pela União resulta justamente da superação das ineficiências resultantes das divisões, da duplicação de custos, do desaproveitamento de sinergias, da escala. Aumentar os recursos comuns permitirá compensar, com evidente vantagem, a redução das despesas públicas assumidas pelos Estados. Será (ou seria) uma clara aposta no crescimento. Diminuir a despesa pública nacional e europeia, em simultâneo, é sem dúvida uma péssima ideia.

 

Porquê então este discurso radicalizado? Pela mesma razão porque, noutras ocasiões e noutros Tratados, as soluções são em geral as menos eficientes, as mais complicadas, resultantes de uma visão demagógica: é o caso bem na ordem do dia da arquitectura da união monetária gizada nas negociações para o Tratado de Maastricht. Quem hoje não proclama ter sido um erro, e que “se estava mesmo a ver”? Num escrito recente em que justamente invoca o caso da criação do euro, António Vitorino considera o processo de negociações que levaram ao projecto da moeda única um “elemento precioso” para…

“… aferir das limitações específicas dos acordos entre Estados e dos constrangimentos que a sua natureza política impõe, mesmo para além da pureza das análises racionais. Esta reflexão sobre os limites da política é particularmente importante quando se trata de aferir, como ocorre actualmente, o bem fundado das soluções encontradas na resposta à crise. Na realidade, os decisores políticos europeus, com especial destaque para os representantes dos Estados Membros da EU, são chamados a encontrar respostas comuns que, correspondendo ao projecto político do todo, sejam susceptíveis de serem aceites pelos cidadãos (ia a escrever… eleitores) de cada um desses Estados”. E se os eleit… perdão, os cidadãos de cada Estado estão confrontados com cortes profundos nos seus rendimentos e orçamentos nacionais, então o mais fácil é oferecer-lhes, à laia de compensação (?), a redução das despesas europeias. Mais difícil seria sem dúvida propor aumentar os recursos da União. Apesar de ser mais eficiente e positivo para os europeus.

Porquê então? Se calhar, porque ainda não chegou o tempo da clarividência, que é como quem diz, da União. Ou porque a natureza humana seja mesmo assim, privilegiando o fácil e rejeitando o que custa mais a implementar, preferindo o óbvio ao menos evidente. Ou talvez, simplesmente, porque é essa a natureza das coisas e o futuro segue por caminhos imprevistos.

Já volto ao assunto…

Europa: que meios?

O futuro da Europa: que meios?

A Universidade Católica – o CESOP (centro de sondagens), em associação com o Instituto de Estudos Políticos e o Departamento de Ciências Sociais e Humanas daquela Universidade – está a terminar um estudo sobre a opinião dos portugueses a propósito da questão “de que meios dispomos para o futuro” da União Europeia. Hoje foram apresentados alguns dados relevantes do estudo, quase a concluir-se, com muitas conclusões interessantes. 

 Nesse contexto, e tendo em vista uma intervenção num seminário organizado para o efeito, fiz uma pequena reflexão sobre o tema. Num contexto de crise e o enquadramento da União Europeia,  o enfoque do estudo, do seminário e desta minha análise, é então o próximo quadro financeiro da União Europeia: é suficiente? De onde vêm (ou devem vir) os recursos? 

 De que meios dispomos para o futuro?

 E comecei, naturalmente, pelas perspectivas financeiras (PF) para os próximos 7 anos (2013-2020). São 3 as questões principais a ter em conta: O valor total das despesas; as rubricas das despesas; e as fontes de rendimento, ou seja, os recursos disponíveis.

 Começando pelo valor total das despesas as últimas PF (entre 2007 e 2013) foram de 994 mil milhões € (994.000.000.000 euros); a proposta do Conselho para as próximas é de 959 mil milhões (MM) €. Seria a primeira vez desde 1988 que as PF são inferiores às do período anterior (seria, porque o Parlamento Europeu não aprovou a proposta do Conselho e está em curso uma negociação entre as duas instituições; mas é expectável que não haja grandes mudanças no que podemos chamar “os grandes números”).

 Quanto às rubricas das despesas, verifica-se um aumento sector a sector, com mais 37,3% de verbas previstas para a rubrica da competitividade para crescimento e empregos e 1% para o crescimento inteligente e inclusivo. Mas como a manta não estica – e foi encurtada, ela diminui noutras rubricas: o maior corte é no crescimento sustentável, incluindo a PAC e a coesão económica, social e territorial que leva um corte de 29,7 MM€, ou seja menos 8,4%. Eis os números, como apresentados pelo próprio Conselho:

 

  Novas PF 14-20 Últimas
PF 07-13
Comparação
2014-20 v. 2007-13
Dotações para compromissos Milhões € Milhões € %
1. Crescimento inclusivo 450.763 446.310 +4,5MM +1,0%
1a. Competitividada para crescimento e emprego 125.614 91.495 +34,1MM +37,3%
1b. Coesão económica, social e territorial 325.149 354.815 -29,7MM -8,4%
2. Crescimento sustentável: recursos naturais 373.179 420.682 -47,5MM -11,3%
3. Segurança e cidadania 15.686 12.366 +3,3MM +26,8%
4. Europa Global 58.704 56.815 +1,9bn +3,3%
5. Administração 61.629 57.082 +4,5bn +8%
6. Compensações 27 n/a  +0,027bn n/a 
Total dotações para compromissos 959.988 994.176 -35,2bn -3,5%
Como % do PNB 1,00% 1,12%     
Total dotações para pagamentos 908.400 942.778 -34,4bn -3,7%
Como % do PNB 0,95% 1,06%     

Preocupante nesta proposta é o prolongamento do fosso dos recursos alocados a título de autorização – isto é, aqueles com que a União se pode comprometer para cada um dos anos em causa – e a título de pagamentos, isto é, a verba efectivamente disponível para despesas. Assim se cria um verdadeiro défice europeu, como se viu no final do ano passado quando a União não dispôs de recursos para honrar todos os seus compromissos e o orçamento anual não pôde ser desbloqueado de imediato.

A propósito da recusa do PE de autorizar estas PF como se apresentam, resumo o essencial da posição da instituição: o Parlamento tinha apelado ao Conselho para que aprovasse um orçamento (PF) que promovesse o crescimento. O QF plurianual (QFP) proposto vai no sentido oposto. Os pontos principais que os deputados querem ver contemplados são: não ao já referido défice estrutural, isto é, à acumulação e recondução dos pedidos de pagamento no orçamento comunitário. Flexibilidade, revisão obrigatória, recursos próprios: a equipa de negociação do PE conduzirá as negociações sobre um pacote global que inclua uma revisão obrigatória do QFP a meio da sua vigência (já com o novo PE e Comissão), flexibilidade na utilização das verbas entre rubricas entre e um acordo sobre os recursos próprios. Transparência: qualquer votação sobre o QFP deve ser feita “de maneira aberta e transparente”.  Se não houver acordo sobre o QFP até ao final do ano aplicar-se-ão os limites máximos previstos para 2013 ajustados à inflação. “Não há acordo sobre nada até que haja acordo sobre tudo”, conclui o PE.

Em breve colocarei um novo texto sobre a razão principal para esta querela entre os deputados eleitos e o Conselho Europeu (onde se sentam os chefes de Estado e de governo). Porquê estes cortes e porquê esta pressão?

Até já!

EM DEFESA DO EURO

Entre futuro e passado (2)

Vivemos num tempo entre tempos. A olhar para um passado que acabou, mas saudosos dele, enquanto esperamos o tempo que não chega, mesmo que nos chegue todos os dias.

Vem isto a propósito da União Europeia. Enquanto se anunciam diariamente debates (como o de hoje na RTP1) sobre a saída do euro, poucos se detêm a olhar para a floresta que é o Mundo e de que a União ocupa mais de um quarto se a referência for o PIB, mas apenas 7%, se for a percentagem de população. 7%! … e a minguar, dada a tendência demográfica.

Numa reflexão racional, ordeira e informada, a pertinência desta integração de países, economias e modos de vida não mereceria discussão. Afinal, ela permitiu aos povos europeus evitar a chaga da guerra que sempre os assolou, afinal, ela contribuiu para a convergência das economias (é um facto), afinal, ela levou um selo de liberdade a povos e países que, nalguns casos, nunca tinham tido uma experiência democrática duradoura.

Mas não vivemos tempos para reflexões racionais. A crise brutal que assola a Europa foi também causada por uma construção irreflectida e apressada de uma zona monetária entre economias demasiado díspares? Então, o melhor é acabar com a zona euro. Como se isso não fosse mais do que replicar o que tivemos – o passado que acabou mas para o qual continuamos a olhar -, com o seu rol de más soluções e dramáticas experiências.

Pôr o acento tónico na saída como se não houvesse soluções melhores é ignorar que há soluções melhores ou, pelo menos, significa remetê-las para um estatuto inferior. Antes de condenar a zona euro, talvez fosse melhor tentar perceber o que já foi feito e, sobretudo, o que falta fazer para a salvar. E de que forma essa salvação pode abrir as portas do futuro, o tal a que aspiramos e que parece nunca chegar apesar dele nos chegar todos os dias.

Explico: a Europa está na fase final da construção de uma união muito mais estreita entre os seus povos, em particular no que diz respeito ao euro, a qual resolverá muitos dos problemas que tornaram a moeda única um factor de instabilidade. Falta completar a união bancária, falta fazer da união orçamental um instrumento credível e visível (e neste caso um é condição do outro), falta utilizar diversamente os fundos estruturais tornando o CREN um verdadeiro fautor de crescimento.

Claro que a responsabilidade pela situação da zona euro é de todos e ninguém pode considerar-se excluído dela. Por uma vez (mas só por uma) concordo com o senhor Soros quando diz à Alemanha para decidir entre sair (ela mesma) do euro ou então aceitar os chamados “eurobonds” (emissão de dívida nacional com garantia europeia). Mas não é só isso: é também deixar de pôr obstáculos à conclusão da união bancária (e aos sistemas comuns de garantia de depósitos e de resolução de crises), é mudar o discurso da culpa e castigo para um discurso de solidariedade e responsabilidade. E com isso escolher entre o caminho do regresso ao passado ou o futuro que só espera que o reconheçamos. Sei que os alemães, mais do que os outros povos, têm consciência da alternativa que se coloca a todos os europeus.  

Ainda há tempo para impedir o continente europeu de voltar ao antigo ciclo da divisão. Esse que, no passado, deu os frutos que sabemos. Mas temos de deixar de pôr o acento tónico nas soluções que, inevitavelmente, nos conduziriam a esse passado.

Margaret Thatcher : a virtude e os limites da vontade

O Papel, 11 de Abril de 2013

Por : Carlos Gaspar

 Margaret Thatcher é, com toda a probabilidade, o último Primeiro Ministro europeu cuja morte ainda foi notícia de primeira página da imprensa chinesa. Esse sinal, talvez mais do que qualquer outro, serve para a situar não só como um grande personagem da politica internacional, mas também como uma figura de transição.

 Só um grande personagem se pode apropriar dos epítetos mais pejorativos como títulos de glória. Parece ter sido Yuri Andropov quem lhe chamou “Iron Lady” para denunciar a sua intransigência anti-comunista : Margaret Thatcher adoptou esse “nome de guerr”a. Giscard d’Estaing, mais grosseiro, chamou-lhe “la fille de l’épicier” : a Primeiro Ministro era, e nunca quis deixar de ser, a “filha do merceeiro”, o outro nome do patriotismo inglês.

 Margaret Thatcher foi Primeiro Ministro durante onze anos cruciais, no fim da Guerra Fria. Em Maio de 1979, o Partido Conservador regressou ao poder com um programa de reformas radical, determinado a travar a inflação, desfazer a força dos sindicatos e pôr fim ao declinio do Reino Unido. Mas as suas políticas precisavam de tempo antes de produzir efeitos e, nos anos seguintes, a inflação continuou demasiado elevada, o produto interno bruto diminuiu, o desemprego ultrapassou os dez por cento e persistiu a instabilidade social.

 Dois anos depois, Margaret Thatcher era o Primeiro Ministro mais impopular desde Neville Chamberlain. Foi salva pela Junta militar argentina que, no dia 2 de Abril de 1982, decidiu invadir as ilhas Falkland – um arquipélago perdido nos confins do Atlântico Sul. A invasão foi uma surpresa para o Governo, que não estava preparado para responder. Os partidários da mediação diplomática, como Francis Pym, o Secretário do Foreign Office, tinham peso, e o Secretário de Estado norte-americano, Alexander Haig, queria evitar uma intervenção britânica, que punha em causa uma negociação crucial para pôr fim ao programa nuclear militar da Argentina. Thatcher não tinha dúvidas sobre o que fazer. A crise das Falkland invertia o paradigma da crise do Suez : o Reino Unido tinha a obrigação de defender a sua colónia e a Argentina foi condenada pelo Conselho de Segurança, no dia seguinte à invasão. Dois dias depois, Thatcher enviou uma esquadra para o Atlântico Sul e as forças da Junta renderam-se na capital das Falkland no dia 14 de Junho. No fim do conflito, as sondagens indicavam que mais de 80 por cento dos britânicos apoiavam o modo como o Governo tinha resolvido a crise. O Partido Conservador venceu as duas eleições gerais seguintes, em 1983 e em 1987.

 No momento da vitória, a Primeiro Ministro proclamou : “We have ceased to be a nation in retreat”. Mas o voluntarismo necessário para vencer a guerra das Falkland não alterou o pragmatismo indispensável para garantir o realismo da politica externa britânica. Três meses depois, em  Setembro de 1982, Margaret Thatcher foi a Pequim dizer a Deng Xiaoping que o Reino Unido queria permanecer em Hong Kong depois de 1997, a data em que expirava o arrendamento dos Novos Territórios adjacentes à colónia britânica. Deng disse Thatcher que a República Popular ia recuperar Hong Kong e acrescentou que “nem a China era a Argentina, nem Hong Kong era as Falkland”. Em 1985, Margaret Thatcher e o seu homólogo chinês, Zhao Ziyang,  assinaram a Declaração Conjunta sino-britânica sobre o futuro de Hong Kong, que confirmou a transferência de soberania para a China em Julho de 1997.

 A prioridade atribuida à “special relationship” com os Estados Unidos era um artigo de fé para Thatcher. A eleição do Presidente Ronald Reagan foi importante para consolidar a aliança anglo-americana e o Governo conservador esteve na primeira linha de defesa da instalação dos Pershing II da OTAN, contra uma forte campanha pacifista. Em 1982, os norte-americanos tinham acabado por apoiar a intervenção britânica nas Falklands e, no ano seguinte, Thatcher não protestou quando os Estados Unidos se esqueceram de prevenir o seu melhor aliado europeu antes de invadir   Grenada, um Estado membro da Commonwealth. Em 1986, Thatcher, contra a posição dos seus parceiros europeus, apoiou a intervenção norte-americana na Líbia, que partiu de bases militares no Reino Unido. 

 Thatcher foi crucial na definição da resposta de Reagan à  “Perestroika”, Contra o cepticismo dominante, a “Iron Lady” deu a sua benção a Mikhail Gorbachev. Depois de o ter recebido em Chequers, juntamente com Raissa Gorbachev, professora de Marxismo-Leninismo, a Primeiro Ministro disse ao novo Secretário-Geral soviético e ao Presidente norte-americano : “We can do business together”. A diplomacia britânica voltou a ser relevante na política internacional. 

 A vinculação transatlântica de Thatcher não tinha equivalente na sua politica europeia. Desde a adesão às Comunidades Europeias, a política britânica era dominada ficou dominada pelo problema da contribuição para o orçamento comunitário  – perto de mil milhões de libras por ano – considerada excessiva à esquerda e à direita. A Primeiro Ministro conservadora transformou esse tema numa questão política e e adoptou uma palavra de ordem – “We want our money” – que lhe custou um isolamento crescente no Conselho Europeu.

 A linha de Margaret Thatcher era uma espécie “gaullismo liberal”, uma contradição de termos que combinava o nacionalismo anti-federalista com uma posição anti-estatista : “We have not rolled back the fortress of the state in Britain only to see it re-imposed at a European level with a European super-state”. Todavia, essa posição não se traduziu numa ruptura, confirmando a interpretação de Lord Soames sobre a sua politica : “On Europe, she is an agnostic who continues to go church”.

 O Conselho Europeu de Fontainebleau, em Junho de 1984, resolveu a questão da prestação orçamental britânica, com o re-embolso de 66 por cento da contribuição anual em imposto  de valor acrescentado. Esse acordo tornou possível aprovar o Acto Único Europeu, uma prioridade britânica, e completar o alargamento das Comunidades europeias a Portugal e à Espanha, que o Reino Unido apoiara desde a primeira hora. Thatcher empenhou-se decisivamente na defesa do Acto Único e aceitou o voto por maioria qualificada para a execução do programa de liberalização da economia europeia. 

 A estabilização da posição britânica nas Comunidades Europeias foi decisiva para a recuperação económica do Reino Unido. Mas a revolução europeia de 1989, que abriu caminho à unificação da Alemanha, provocou uma crise grave.

 Em coerência com o seu apoio a Gorbachev, Thatcher defendeu uma estratégia de mudança reformista na Europa de Leste. Em 1988, a Primeiro Ministro teve um encontro com a direcção do Solidarnosc em Gdansk, durante a sua visita oficial à Polónia, que marcou o inicio do processo da “mesa redonda”, onde o regime e a oposição acordaram os termos da transição cujo resultado foi a deposição democrática e pacifica do partido comunista polaco e a queda do muro de Berlim.

 O entusiasmo da “Iron Lady” sobre o fim do comunismo não incluia a unificação da Alemanha. Pelo contrário, Thatcher defendia a democratização da RDA : tal como François Mauriac, gostava tanto da democracia e da Alemanha que preferia que existissem duas democracias alemãs.

 Para a Primeiro Ministro britânica, nada tinha mudado na “questão alemã” : “Germany is by its very nature more of a destabilizing than a stabilizing force in Europe”. Thatcher queria contra-balançar o regresso do “perturbador europeu” com uma aliança entre a Grã-Bretanha e a França, em parceria com a União Soviética. Num primeiro momento, Thatcher e o Presidente François Mitterrand uniram esforços para travar a estratégia de unificação do Chanceler Helmut Kohl e proteger a posição de Gorbachev. Mas o Presidente francês acabou por preferir um compromisso com o Chanceler alemão sobre uma nova etapa da unificação europeia e deixou o Primeiro Ministro britânico isolado.

 Depois do seu fracasso, a oposição de Thatcher às propostas franco-alemãs sobre a unificação monetária subiu de tom, quando declarou na Câmara dos Comuns que a Comissão Europeia queria “extinguir a democracia” e impor o federalismo “pela porta das traseiras”. Essa radicalização excessiva esteve na origem da demissão do Vice-Primeiro Ministro, Geoffrey Howe, que desencadeou o processo interno de substituição de Margaret Thatcher pelo seu ministro das Finanças, John Major, escolhido para dirigir o Partido Conservador em 28 de Novembro de 1990.

 Um ano depois, com a dissolução da União Soviética, a Guerra fria chegou ao fim, com a inesperada vitória da democracia liberal, e os “Doze” assinaram o Tratado de Maastricht, em que o Reino Unido ficou fora do programa da moeda única. Era o principio de uma nova era, da qual Margaret Thatcher já não fazia parte.

 

  

 

O meu convidado: Carlos Gaspar

 Quando o Carlos me enviou o texto que se segue neste blog – sobre uma figura que a História já conservava ainda a sua vida não se extinguira – pedi-lhe, como aos outros amigos que com bondade enviam um texto para publicação aqui, uma fotografia. Respondeu-me (perdoa Carlos) ser “muito casto”. Não só casto, permito-me: é um homem discreto e sabedor cujos conhecimentos, informação e pensamento surgem muitas vezes nas palavras de outros, que da sua sabedoria bem fazem em recolher preciosos brocardos e excelentes ideias. Não cuidando de ser príncipe, o Carlos é um fazedor de príncipes; é assim que o vejo desde que, num crescendo feliz, os nossos caminhos se foram cruzando com cada vez maior frequência e incrementámos substancialmente a nossa colaboração. O Carlos Gaspar é um homem do mundo, daqueles que do mundo faz a sua casa, foi assessor de presidentes, investigador de universidades e professor, consultor de entidades públicas, director e membro de prestigiados “thin-tanks”, associações e Institutos, colaborador de fundações e tutti quanti. E pensa muito bem, uma qualidade às vezes menosprezada, como se não fosse a única verdadeiramente importante.

(o meu convidado: Carlos Gaspar)

Em defesa do euro (1)

Um debate viciado

 A recente publicação de dois livros sobre o euro – “euro forte euro fraco” de Vítor Bento e “Porque devemos sair do euro”, da autoria de João Ferreira do Amaral – colocou na ordem do dia (com interrupções para tratar da demissão de Miguel Relvas, dos jogos de futebol, do regresso de Sócrates, do Tribunal Constitucional, dos escândalos do dia) um novo debate: será a saída da zona monetária única a saída para a crise?

 É uma discussão oportuna e importante. Mas é um debate viciado: neste momento, e particularmente se apresentadas por pessoas credíveis e respeitadas, são de sucesso garantido quaisquer aparentes soluções de curto prazo (porque é assim que são entendidas) para a excessiva austeridade que afecta portugueses e outros povos europeus.

 A culpa não é, claro, daqueles autores, nem sequer de quem, no afã louvável (e competente) de propor caminhos para superar as actuais e desesperantes condições económicas lança o debate; nem sequer é criticável quem defenda ser a saída do euro a melhor solução. A culpa é de quem, em Portugal como alhures, tendo particulares responsabilidades na governação e condução da vida pública, engana os cidadãos, por acção ou omissão. Importa dizê-lo, com todas as letras e aos gritos.

 A União Europeia – e em particular a zona euro – são realidades demasiado complexas para dependerem de caprichos de ocasião ou de demagogias eleitoralistas. O que demorou 63 anos a construir pode ser desmantelado em poucos meses? Pode, claro. E o que é que isso interessa? A resposta é muito simples: nada.

 Absolutamente nada. A não ser…

 … a não ser que o futuro europeu dependa da União dos seus povos e Estados, pequenos de mais (sim, mesmo a Alemanha) e ricos de mais (infelizmente nem todos)- é que a União Europeia tem 25% do PIB mundial (um quarto da riqueza produzida no Mundo) com uma população de cerca de 7% (e em perda)…

 … a não ser que da União dependa a paz na Europa, paz essa assegurada entre os seus países desde 1945, o mais longo período sem guerras, civis ou outras, até onde a memória dos homens alcança – e talvez não seja preciso recordar como, fora do chapéu de chuva protector da União mas mesmo nas suas margens, a guerra tem sido mercadoria frequente, como bem o ilustram os Balcãs…

 … a não ser que um mercado interno não possa subsistir sem união monetária e por isso a União precisar da moeda única e não por qualquer outra razão, seja ela um capricho de elites ociosas seja um imaginoso dikat germânico – e para quem julgue que havia verdadeiro mercado interno (livre circulação dos factores, etc.) antes da união monetária, aconselho o estudo da génese do Acto Único em 1986 e, vista da óptica inversa, aconselho uma séria reflexão sobre a razão pela qual a CEE tanto porfiou na busca de uma solução para a cacofonia cambial (projecto de UEM em 70, serpente no túnel em 71, SME em 79, CIG para  a união monetária em 88)…

… a não ser que, em consequência, o fim da moeda única represente o toque de finados pelo mercado interno e, por essa via, implique a sem razão de uma União desprovida de conteúdo – e àqueles a quem o desmantelar dos status quo sempre parece impossível bastará recordar o que aconteceu no século XX a tantos edifícios insubmersíveis (a União Soviética, a Sociedade das Nações, dezenas de ditaduras “eternas”)…

 Nos últimos tempos muitos têm sido aqueles que propõem a discussão sobre a saída da zona euro por parte de Portugal. O livro de João Ferreira do Amaral é sem dúvida o modelo mais acabado e bem estruturado da argumentação sobre essa necessidade (outros já falam em inevitabilidade); não me canso de louvar a coerência do Professor Ferreira do Amaral que, desde sempre, tem mantido uma posição próxima da actual, enquanto tantos ilustres (tantos!) economistas defendiam que a disciplina (monetária, cambial, orçamental) consequente à criação da zona levaria inevitavelmente a uma convergência económica. Mas não posso concordar com uma visão que nos quer fazer andar para trás como se nada tivesse mudado; como se um passado que, entre nós, oscilou sempre entre a indigência e a ditadura, fosse solução para o que quer que fosse; e como se a desvalorização cambial pudesse hoje ter o mesmo efeito que em 1985, quando toda a Europa crescia e o ponto de partida (português) era muito mais baixo (e já nem falo da dívida, do wishful thinking relativamente à boa vontade dos outros povos europeus num cenário desse tipo, do risco da inflação, etc).

 Voltarei a este assunto, ponto por ponto. Mas aqui fica uma espécie de resumo, simplificado e (muito) demagógico, do que julgo estar em jogo nesta discussão:

 Uma opção clara e simples entre sermos os menos pobres dos pobres ou os menos ricos dos ricos… entre aqueles a tendência será sempre para pior; nestes, com o tempo, o equilíbrio e o crescimento regressarão. Connosco ou sem nós.